UERJ 2005 - Questões

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Mysterium$\ ^{1}$

"Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os mais ligeiros, nem a batalha para os mais fortes, nem o pão para os mais sábios, nem as riquezas para os mais inteligentes, mas tudo depende do tempo e do acaso.”

Eclesiastes

Ao tempo e ao acaso eu acrescento o grão de imprevisto. E o grão da loucura, a razoável loucura que é infinita na nossa finitude (4). Vejo minha vida e obra seguindo assim por trilhos paralelos e tão próximos, trilhos que podem se juntar (ou não) lá adiante mas tudo sem explicação, não tem explicação.

Os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas respostas, acabo por pular de um trilho para outro e começo a misturar a realidade com o imaginário, faço ficção em cima de ficção (9), ah! Tanta vontade (disfarçada) de seduzir o leitor, esse leitor que gosta do devaneio. Do sonho. Queria estimular sua fantasia mas agora ele está pedindo lucidez, quer a luz da razão.

Não gosto de teorizar porque na teoria acabo por me embrulhar feito um caramelo em papel transparente, me dê um tempo! Eu peço. Quero ficar fria, espera. Espera que estou me aventurando na busca das descobertas, “Devagar já é pressa!”, disse Guimarães Rosa (1). Preciso agora atravessar o cipoal$\ ^{2}$ dos detalhes e são tantos! E tamanha a minha perplexidade diante do processo criador, Deus! Os indevassáveis signos e símbolos (10). Ainda assim, avanço em meio da névoa (5), quero ser clara em meio desse claro que de repente ficou escuro (6), estou perdida?

Mais perguntas, como nasce um conto? E um romance? Recorro a uma certa aula distante (Antonio Candido) (2) onde aprendi que num texto literário há sempre três elementos: a ideia, o enredo e a personagem. A personagem, que pode ser aparente ou inaparente, não importa. Que pode ser única ou se repetir (11), tive uma personagem que recorreu à máscara para não ser descoberta, quis voltar num outro texto e usou disfarce, assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade (8).

Na tentativa de reter o questionador, acabo por inventar uma figuração na qual a ideia é representada por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega naquele voo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos. Então desce (ou sobe) a aranha e nhac! Prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco.

O questionador acha a imagem meio dramática mas divertida (7), consegui fazê-lo sorrir? Acho que sim. Contudo, há aquele leitor desconfiado, que não se deixou seduzir porque quer ver as personagens em plena liberdade e nessa representação elas estão como que sujeitas a uma destinação. A uma condenação (12). E cita Jean-Paul Sartre que pregava a liberdade também para as personagens, (3) ah! Odiosa essa fatalidade dos seres humanos (inventados ou não) caminhando para o bem e para o mal. Sem mistura.

Começo a me sentir prisioneira dos próprios fios que fui inventar, melhor voltar às divagações iniciais onde vejo (como eu mesma) o meu próximo também embrulhado. Ou embuçado$\ ^{3}$? Desembrulhando esse próximo, também vou me revelando e na revelação, me deslumbro para me obumbrar$\ ^{4}$ novamente nesta viragem-voragem do ofício.

(TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.)

Glossário:

$\ ^{1}$ palavra latina para "mistério”

$\ ^{2}$ mato abundante de cipós

$\ ^{3}$ escondido

$\ ^{4}$ cobrir de sombras

As figuras de linguagem são recursos que afastam as construções linguísticas de seu valor literal, com o objetivo de tornar essas construções mais expressivas.

O emprego de uma figura de linguagem e sua correta nomeação estão presentes em:


Carlos estava homem (1). Sem que se amedrontasse, assuntou a noite envelhecer. Só reparou no vagar dela. Muito sereno, porém apressado.

Aos poucos se apagaram as bulhas$\ ^{1}$ da casa, vinte e três horas (6). Se irritou com a impaciência chegando, que o fazia banzar$\ ^{2}$ pelo quarto assim, e lhe dava sensação do prisioneiro que espera o minuto pra fugir. Puxa! Coração aos priscos$\ ^{3}$ . A calma era exterior (2). Não. O coração também se fatigou e sentou. Carlos também sentou (3). Cruzou os braços pra não mexer tanto assim, disposto a esperar com paciência. Tomou o cuidado de pôr o braço esquerdo sobre o outro, que assim o relógio ficava à mostra na munheca.

E os minutos se acabando, tardonhos$\ ^{4}$. Aliás nem tinha pressa mais (4), o aproximar da aventura lhe apaziguava as ardências (7). Resfriado. Qualquer coisa lhe tirava o calor dos dedos... Se lembrou de vestir pijama limpo, fez. Depois pensou. Não tinha propósito trocar de pijama só porque (8). (...) Vestiu outra vez o pijama usado e se reconciliou consigo, já confiante.

E outra vez se sentou. Olhava a imobilidade dos ponteiros que lhe abririam a porta de Fräulein$\ ^{5}$. Que o entregariam a Fräulein. Uma comoção doce, quase filial esquentou Carlos novamente. E porque amava sem temor nem pensamento, sem gozo, apenas por instinto e por amor, por gozo, iria se entregar. Está certo. Carlos amava com paixão.

A imobilidade é a sala de espera do sono. Procurou ler e cochilou. Vinte e três e trinta, se ergueu. Caceteação esperar! Também o momento estava estourando por aí, graças a Deus! Sentou na cama. Mais vinte e sete minutos. Vinte e seis... Vinte e cinco... Vinte e... Nos braços cruzados sobre a guarda da cama, a cabeça dele pousou.

A posição incômoda acordou Carlos. Espreguiçou, empurrando com as mãos a dor do corpo, sentado por quê? Ah! Lembrança viva enxota qualquer sono. Hora e meia! Desejo furioso subiu. Sem reflexão, sem vergonha da fraqueza, corre pra porta de Fräulein (9). Fechada! Bate. Bate forte, com risco de acordar os outros, bate até a porta se abrir, entra.

Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras frases de explicação – se ele der espaço para tanto entre os dois! – porém obedeço a várias razões que obrigam-me a não contar a cena do quarto (5).

(ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 2002.)

Glossário:

$\ ^{1}$ sons

$\ ^{2}$ meditar

$\ ^{3}$ saltos

$\ ^{4}$ lentos

$\ ^{5}$ em alemão, forma de tratamento para "senhorita"

Amar, verbo intransitivo nos fala sobre a iniciação amorosa do adolescente Carlos por sua preceptora, Fraulein Elza, contratada pelo pai do rapaz para tal tarefa.

No texto, a passagem que melhor resume as mudanças ocorridas no jovem em virtude da descoberta do amor é:


Carlos estava homem (1). Sem que se amedrontasse, assuntou a noite envelhecer. Só reparou no vagar dela. Muito sereno, porém apressado.

Aos poucos se apagaram as bulhas$\ ^{1}$ da casa, vinte e três horas (6). Se irritou com a impaciência chegando, que o fazia banzar$\ ^{2}$ pelo quarto assim, e lhe dava sensação do prisioneiro que espera o minuto pra fugir. Puxa! Coração aos priscos$\ ^{3}$ . A calma era exterior (2). Não. O coração também se fatigou e sentou. Carlos também sentou (3). Cruzou os braços pra não mexer tanto assim, disposto a esperar com paciência. Tomou o cuidado de pôr o braço esquerdo sobre o outro, que assim o relógio ficava à mostra na munheca.

E os minutos se acabando, tardonhos$\ ^{4}$. Aliás nem tinha pressa mais (4), o aproximar da aventura lhe apaziguava as ardências (7). Resfriado. Qualquer coisa lhe tirava o calor dos dedos... Se lembrou de vestir pijama limpo, fez. Depois pensou. Não tinha propósito trocar de pijama só porque (8). (...) Vestiu outra vez o pijama usado e se reconciliou consigo, já confiante.

E outra vez se sentou. Olhava a imobilidade dos ponteiros que lhe abririam a porta de Fräulein$\ ^{5}$. Que o entregariam a Fräulein. Uma comoção doce, quase filial esquentou Carlos novamente. E porque amava sem temor nem pensamento, sem gozo, apenas por instinto e por amor, por gozo, iria se entregar. Está certo. Carlos amava com paixão.

A imobilidade é a sala de espera do sono. Procurou ler e cochilou. Vinte e três e trinta, se ergueu. Caceteação esperar! Também o momento estava estourando por aí, graças a Deus! Sentou na cama. Mais vinte e sete minutos. Vinte e seis... Vinte e cinco... Vinte e... Nos braços cruzados sobre a guarda da cama, a cabeça dele pousou.

A posição incômoda acordou Carlos. Espreguiçou, empurrando com as mãos a dor do corpo, sentado por quê? Ah! Lembrança viva enxota qualquer sono. Hora e meia! Desejo furioso subiu. Sem reflexão, sem vergonha da fraqueza, corre pra porta de Fräulein (9). Fechada! Bate. Bate forte, com risco de acordar os outros, bate até a porta se abrir, entra.

Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras frases de explicação – se ele der espaço para tanto entre os dois! – porém obedeço a várias razões que obrigam-me a não contar a cena do quarto (5).

(ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Itatiaia, 2002.)

Glossário:

$\ ^{1}$ sons

$\ ^{2}$ meditar

$\ ^{3}$ saltos

$\ ^{4}$ lentos

$\ ^{5}$ em alemão, forma de tratamento para "senhorita"

Aqui devem se trocar naturalmente umas primeiras frases de explicação - se ele der espaço para tanto entre os dois! - porém obedeço a várias razões que obrigam-me a não contar a cena do quarto. (5)

O narrador opta por não descrever o encontro entre os amantes, não declarando suas razões para isso. Essa opção do narrador pode ser confirmada na seguinte passagem do texto:


Mysterium$\ ^{1}$

"Eu vi ainda debaixo do sol que a corrida não é para os mais ligeiros, nem a batalha para os mais fortes, nem o pão para os mais sábios, nem as riquezas para os mais inteligentes, mas tudo depende do tempo e do acaso.”

Eclesiastes

Ao tempo e ao acaso eu acrescento o grão de imprevisto. E o grão da loucura, a razoável loucura que é infinita na nossa finitude (4). Vejo minha vida e obra seguindo assim por trilhos paralelos e tão próximos, trilhos que podem se juntar (ou não) lá adiante mas tudo sem explicação, não tem explicação.

Os leitores pedem explicações, são curiosos e fazem perguntas. Respondo. Mas se me estendo nas respostas, acabo por pular de um trilho para outro e começo a misturar a realidade com o imaginário, faço ficção em cima de ficção (9), ah! Tanta vontade (disfarçada) de seduzir o leitor, esse leitor que gosta do devaneio. Do sonho. Queria estimular sua fantasia mas agora ele está pedindo lucidez, quer a luz da razão.

Não gosto de teorizar porque na teoria acabo por me embrulhar feito um caramelo em papel transparente, me dê um tempo! Eu peço. Quero ficar fria, espera. Espera que estou me aventurando na busca das descobertas, “Devagar já é pressa!”, disse Guimarães Rosa (1). Preciso agora atravessar o cipoal$\ ^{2}$ dos detalhes e são tantos! E tamanha a minha perplexidade diante do processo criador, Deus! Os indevassáveis signos e símbolos (10). Ainda assim, avanço em meio da névoa (5), quero ser clara em meio desse claro que de repente ficou escuro (6), estou perdida?

Mais perguntas, como nasce um conto? E um romance? Recorro a uma certa aula distante (Antonio Candido) (2) onde aprendi que num texto literário há sempre três elementos: a ideia, o enredo e a personagem. A personagem, que pode ser aparente ou inaparente, não importa. Que pode ser única ou se repetir (11), tive uma personagem que recorreu à máscara para não ser descoberta, quis voltar num outro texto e usou disfarce, assim como faz qualquer ser humano para mudar de identidade (8).

Na tentativa de reter o questionador, acabo por inventar uma figuração na qual a ideia é representada por uma aranha. A teia dessa aranha seria o enredo. A trama. E a personagem, o inseto que chega naquele voo livre e acaba por cair na teia da qual não consegue fugir, enleado pelos fios grudentos. Então desce (ou sobe) a aranha e nhac! Prende e suga o inseto até abandoná-lo vazio. Oco.

O questionador acha a imagem meio dramática mas divertida (7), consegui fazê-lo sorrir? Acho que sim. Contudo, há aquele leitor desconfiado, que não se deixou seduzir porque quer ver as personagens em plena liberdade e nessa representação elas estão como que sujeitas a uma destinação. A uma condenação (12). E cita Jean-Paul Sartre que pregava a liberdade também para as personagens, (3) ah! Odiosa essa fatalidade dos seres humanos (inventados ou não) caminhando para o bem e para o mal. Sem mistura.

Começo a me sentir prisioneira dos próprios fios que fui inventar, melhor voltar às divagações iniciais onde vejo (como eu mesma) o meu próximo também embrulhado. Ou embuçado$\ ^{3}$? Desembrulhando esse próximo, também vou me revelando e na revelação, me deslumbro para me obumbrar$\ ^{4}$ novamente nesta viragem-voragem do ofício.

(TELLES, Lygia Fagundes. Durante aquele estranho chá: perdidos e achados. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.)

Glossário:

$\ ^{1}$ palavra latina para "mistério”

$\ ^{2}$ mato abundante de cipós

$\ ^{3}$ escondido

$\ ^{4}$ cobrir de sombras

Todo texto pressupõe relações com outros textos, por isso nele estão presentes várias vozes, que podem ser reconhecidas com maior ou menor facilidade. A isso chamamos intertextualidade.

Um exemplo de intertextualidade cujo sentido está corretamente definido verifica-se em:


Lóri, pela primeira vez na sua vida, sentiu uma força que mais parecia uma ameaça contra o que ela fora até então. Ela então falou sua alma para Ulisses:

- Um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha extrema individualidade de pessoa mas seremos um só (5).

Olhou para Ulisses com a humildade que de repente sentia e viu com surpresa a surpresa dele. Só então ela se surpreendeu consigo própria (1). Os dois se olharam em silêncio (2). Ela parecia pedir socorro contra o que de algum modo involuntariamente dissera. E ele com os olhos miúdos quis que ela não fugisse (3) e falou:

- Repita o que você disse, Lóri.

- Não sei mais.

- Mas eu sei, eu vou saber sempre (4). Você literalmente disse: um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha extrema individualidade de pessoa mas seremos um só.

- Sim.

Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo (6).

(LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.)

- Um dia será o mundo com sua impersonalidade soberba versus a minha extrema individualidade de pessoa mas seremos um só. (5)

Nessa declaração, o discurso da personagem se estrutura a partir de um raciocínio que pode ser caracterizado como:


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