UERJ 2020 Português - Questões
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O que nossas metáforas dizem de nós
Para o poeta Robert Frost, a vida era um caminho que passa por encruzilhadas inevitáveis; para Fernando Pessoa, uma sombra que passa sobre um rio. Shakespeare via o mundo como um palco e Scott Fitzgerald percebia os seres humanos como barcos contra a corrente. Metáforas como essas nos rodeiam, mas não só quando seguramos um livro nas mãos. Em nosso uso cotidiano da língua, elas são tão presentes que nem sequer percebemos. São exemplos “teto de vidro impede a carreira das mulheres”, “a bolha do aluguel”, “cortar o mal pela raiz”. ¹Considerada a forma por excelência da linguagem figurada, a metáfora às vezes é tida como mero embelezamento do discurso.
Entretanto, desde 1980, com a publicação do livro Metáforas da vida cotidiana, essa figura retórica recuperou seu protagonismo. Os autores George Lakoff e Mark Johnson mostraram que as alegorias desenham o mapa conceitual a partir do qual observamos, pensamos e agimos. Com frequência são nossa bússola invisível, orientando tanto os gestos instintivos que fazemos como as decisões mais importantes que tomamos. É muito provável que aqueles que concebem a vida como uma cruz e os que a entendem como uma viagem não reajam da mesma forma ante um mesmo dilema. As metáforas são ferramentas eficazes e de múltiplas utilidades. Ao partir de elementos já conhecidos, nos ajudam a examinar realidades, conceitos e teorias novas de uma maneira prática. Também nos servem para abordar experiências traumáticas nas quais a linguagem literal se revela impotente. São vigorosos atalhos que a mente usa para assimilar situações complexas em que a literalidade acaba sendo tediosa, limitada e confusa. É mais fácil para nós entender que a depressão é uma espécie de buraco negro e que o DNA é o manual de instruções de cada ser vivo.
As figurações dão coesão às identidades coletivas, pois circulam sem cessar até se incorporarem à linguagem cotidiana. Há alguns anos, os psicólogos Paul Thibodeau e Lera Boroditsky, da Universidade Stanford (E.U.A.), analisaram os resultados de um debate sobre políticas contra a criminalidade que recorria a duas metáforas. Quando o problema era ilustrado como se houvesse predadores devorando a comunidade, a resposta era endurecer a vigilância policial e aplicar leis mais severas. No entanto, quando o problema era exposto como um vírus infectando a cidade, a opção era a de adotar medidas para erradicar a desigualdade e melhorar a educação. Comparações ruins levam a políticas ruins, escreveu o Nobel de Economia Paul Krugman.
No campo da medicina, tem havido mudanças de paradigma no que diz respeito ao impacto emocional das metáforas. Num recente seminário organizado pela Universidade de Navarra (Espanha), a linguista Elena Semino dissertou sobre os efeitos de abordar o câncer como se fosse uma guerra, provocando sensações negativas quando o paciente acredita estar “perdendo a batalha”, mesmo que isso possa ser estimulante para outros. O erro, segundo a especialista, reside em misturar os campos semânticos da guerra e da saúde. Para corrigir essa questão, a linguista elabora o que chama de “cardápio de metáforas”, para que médicos e pacientes enfrentem a doença de forma mais construtiva.
As boas metáforas nos trazem outras perspectivas, fronteiras menos rígidas e novas categorizações que substituem aquelas já desgastadas.
(MARTA REBÓN. Adaptado de brasil.elpais.com, $11/04/2018$.)
¹ Considerada a forma por excelência da linguagem figurada, a metáfora às vezes é tida como mero embelezamento do discurso.
Com a ampliação da visão sobre o papel da metáfora, ressalta-se a seguinte propriedade dessa figura de linguagem:
IDENTIDADE (1992)
Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai...
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história
Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade
(JORGE ARAGÃO. vagalume.com.br)
A metáfora “preto de alma branca” é criticada na letra da canção por estar associada a um contexto de:
$\begin{array}{lll} & \text{Tenho interesse pessoal no tempo. Primeiro, meu} \textit{ best-seller} \text{ chama-se} \textit{ Uma breve história do}\\ & \textit{tempo}. \text{Segundo, por ser alguém que, aos 21 anos, foi informado pelos médicos de que teria apenas}\\ & \text{mais cinco anos de vida e que completou 76 anos em 2018. Tenho uma aguda e desconfortável}\\ & \text{consciência da passagem do tempo. Durante a maior parte da minha vida, convivi com a sensação}\\ 5 & \text{de que estava fazendo hora extra.}\\ \\ & \text{Parece que nosso mundo enfrenta uma instabilidade política maior do que em qualquer outro}\\ & \text{momento. Uma grande quantidade de pessoas sente ter ficado para trás. Como resultado, temos}\\ & \text{nos voltado para políticos populistas, com experiência de governo limitada e cuja capacidade para}\\ & \text{tomar decisões ponderadas em uma crise ainda está para ser testada. A Terra sofre ameaças em}\\ 10 & \text{tantas frentes que é difícil permanecer otimista. Os perigos são grandes e numerosos demais. O}\\ & \text{planeta está ficando pequeno para nós. Nossos recursos físicos estão se esgotando a uma velocidade}\\ & \text{alarmante. A mudança climática foi uma trágica dádiva humana ao planeta. Temperaturas cada vez}\\ & \text{mais elevadas, redução da calota polar, desmatamento, superpopulação, doenças, guerras, fome,}\\ & \text{escassez de água e extermínio de espécies; todos esses problemas poderiam ser resolvidos, mas}\\ 15 & \text{até hoje não foram. O aquecimento global está sendo causado por todos nós. Queremos andar de}\\ & \text{carro, viajar e desfrutar um padrão de vida melhor. Mas quando as pessoas se derem conta do que}\\ & \text{está acontecendo, pode ser tarde demais.}\\ \\ & \text{Estamos no limiar de um período de mudança climática sem precedentes. No entanto, muitos políticos}\\ & \text{negam a mudança climática provocada pelo homem, ou a capacidade do homem de revertê-la.}\\ 20 & \text{O derretimento das calotas polares ártica e antártica reduz a fração de energia solar refletida de volta}\\ & \text{no espaço e aumenta ainda mais a temperatura. A mudança climática pode destruir a Amazônia e}\\ & \text{outras florestas tropicais, eliminando uma das principais ferramentas para a remoção do dióxido}\\ & \text{de carbono da atmosfera. A elevação da temperatura dos oceanos pode provocar a liberação de}\\ & \text{grandes quantidades de dióxido de carbono. Ambos os fenômenos aumentariam o efeito estufa e}\\ 25 & \text{exacerbariam o aquecimento global, tornando o clima em nosso planeta parecido com o de Vênus:}\\ & \text{atmosfera escaldante e chuva ácida a uma temperatura de}\ 250\ ^\circ \text{C}. \text{A vida humana seria impossível.}\\ & \text{Precisamos ir além do Protocolo de Kyoto – o acordo internacional adotado em 1997 – e cortar}\\ & \text{imediatamente as emissões de carbono. Temos a tecnologia. Só precisamos de vontade política.}\\ \\ & \text{Quando enfrentamos crises parecidas no passado, havia algum outro lugar para colonizar. Estamos}\\ 30 & \text{ficando sem espaço, e o único lugar para ir são outros mundos. Tenho esperança e fé de que nossa}\\ & \text{engenhosa raça encontrará uma maneira de escapar dos sombrios grilhões do planeta e, deste}\\ & \text{modo, sobreviver ao desastre. A mesma providência talvez não seja possível para os milhões de}\\ & \text{outras espécies que vivem na Terra, e isso pesará em nossa consciência.}\\ \\ & \text{Mas somos, por natureza, exploradores. Somos motivados pela curiosidade, essa qualidade}\\ 35 & \text{humana única. Foi a curiosidade obstinada que levou os exploradores a provar que a Terra não era}\\ & \text{plana, e é esse mesmo impulso que nos leva a viajar para as estrelas na velocidade do pensamento,}\\ & \text{instigando-nos a realmente chegar lá. E sempre que realizamos um grande salto, como nos pousos}\\ & \text{lunares, exaltamos a humanidade, unimos povos e nações, introduzimos novas descobertas e novas}\\ & \text{tecnologias. Deixar a Terra exige uma abordagem global combinada – todos devem participar.} \end{array}$
(STEPHEN HAWKING (1942-2018) Adaptado de Breves respostas para grandes questões. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.)
Como resultado, temos nos voltado para políticos populistas, com experiência de governo limitada e cuja capacidade para tomar decisões ponderadas em uma crise ainda está para ser testada. (l. 7-9)
No trecho acima, Stephen Hawking faz uma afirmação cujo conteúdo se desdobra nas cinco frases subsequentes.
Essas cinco frases cumprem o propósito de:
O que nossas metáforas dizem de nós
Para o poeta Robert Frost, a vida era um caminho que passa por encruzilhadas inevitáveis; para Fernando Pessoa, uma sombra que passa sobre um rio. Shakespeare via o mundo como um palco e Scott Fitzgerald percebia os seres humanos como barcos contra a corrente. Metáforas como essas nos rodeiam, mas não só quando seguramos um livro nas mãos. Em nosso uso cotidiano da língua, elas são tão presentes que nem sequer percebemos. São exemplos “teto de vidro impede a carreira das mulheres”, “a bolha do aluguel”, “cortar o mal pela raiz”. ¹Considerada a forma por excelência da linguagem figurada, a metáfora às vezes é tida como mero embelezamento do discurso.
Entretanto, desde 1980, com a publicação do livro Metáforas da vida cotidiana, essa figura retórica recuperou seu protagonismo. Os autores George Lakoff e Mark Johnson mostraram que as alegorias desenham o mapa conceitual a partir do qual observamos, pensamos e agimos. Com frequência são nossa bússola invisível, orientando tanto os gestos instintivos que fazemos como as decisões mais importantes que tomamos. É muito provável que aqueles que concebem a vida como uma cruz e os que a entendem como uma viagem não reajam da mesma forma ante um mesmo dilema. As metáforas são ferramentas eficazes e de múltiplas utilidades. Ao partir de elementos já conhecidos, nos ajudam a examinar realidades, conceitos e teorias novas de uma maneira prática. Também nos servem para abordar experiências traumáticas nas quais a linguagem literal se revela impotente. São vigorosos atalhos que a mente usa para assimilar situações complexas em que a literalidade acaba sendo tediosa, limitada e confusa. É mais fácil para nós entender que a depressão é uma espécie de buraco negro e que o DNA é o manual de instruções de cada ser vivo.
As figurações dão coesão às identidades coletivas, pois circulam sem cessar até se incorporarem à linguagem cotidiana. Há alguns anos, os psicólogos Paul Thibodeau e Lera Boroditsky, da Universidade Stanford (E.U.A.), analisaram os resultados de um debate sobre políticas contra a criminalidade que recorria a duas metáforas. Quando o problema era ilustrado como se houvesse predadores devorando a comunidade, a resposta era endurecer a vigilância policial e aplicar leis mais severas. No entanto, quando o problema era exposto como um vírus infectando a cidade, a opção era a de adotar medidas para erradicar a desigualdade e melhorar a educação. Comparações ruins levam a políticas ruins, escreveu o Nobel de Economia Paul Krugman.
No campo da medicina, tem havido mudanças de paradigma no que diz respeito ao impacto emocional das metáforas. Num recente seminário organizado pela Universidade de Navarra (Espanha), a linguista Elena Semino dissertou sobre os efeitos de abordar o câncer como se fosse uma guerra, provocando sensações negativas quando o paciente acredita estar “perdendo a batalha”, mesmo que isso possa ser estimulante para outros. O erro, segundo a especialista, reside em misturar os campos semânticos da guerra e da saúde. Para corrigir essa questão, a linguista elabora o que chama de “cardápio de metáforas”, para que médicos e pacientes enfrentem a doença de forma mais construtiva.
As boas metáforas nos trazem outras perspectivas, fronteiras menos rígidas e novas categorizações que substituem aquelas já desgastadas.
(MARTA REBÓN. Adaptado de brasil.elpais.com, $11/04/2018$.)
No texto, apresenta-se o princípio que estrutura as metáforas por meio da seguinte palavra sublinhada:
$\begin{array}{lll} & \text{A matéria saiu no}\ \textit{New York Times},\ \text{foi publicada na}\ \textit{Folha de São Paulo;}\ \text{deveria ser bibliografia}\\ & \text{obrigatória do ensino fundamental à pós-graduação, deveria ser colada aos postes, lançada de aviões,}\\ & \text{viralizada nas redes sociais, impressa em santinhos, guardada na carteira, no bolso ou no sutiã e lida}\\ & \text{toda vez que a desilusão, o desespero, a melancolia ou mesmo o tédio batesse na porta, batesse na aorta:}\\ 5 & \text{“Para salvar Stradivarius, uma cidade inteira fica em silêncio”.}\\ \\ & \text{Antonio Stradivari viveu entre 1644 e 1737 em Cremona, norte da Itália, cidadezinha que hoje}\\ & \text{conta com 72267 habitantes. Durante algumas décadas dos séculos XVII e XVIII, Stradivari}\\ & \text{produziu instrumentos de corda, como violinos, cujos sons quase quatro séculos de conhecimento}\\ & \text{acumulado não foram capazes de igualar.}\\ \\ 10 & \text{Por muito tempo permaneceu um mistério o que fazia aqueles instrumentos tão diferentes dos}\\ & \text{demais, fabricados antes ou depois. Estudos recentes, porém, mostraram que, para além da artesania}\\ & \text{magistral do}\ \textit{luthier*},\ \text{um tratamento químico dado à madeira, à época da fabricação, interfere na}\\ & \text{qualidade do som dos instrumentos.}\\ \\ & \text{O tempo de uso também entra na equação: a secura da madeira e a distância entre as fibras, causada}\\ 15 & \text{pela oxidação, são razões pelas quais, segundo o dr. Hwan-Ching Tai, autor de um estudo de 2016,}\\ & \text{“esses velhos violinos vibram mais livremente, o que permite a eles expressar uma gama mais ampla}\\ & \text{de emoções”.}\\ \\ & \text{Se é verdade que os violinos Stradivarius, como muitos vinhos, melhoraram com o tempo, é}\\ & \text{inexorável que, em algum momento, avinagrem. Pois esse momento se aproxima: depois de quase}\\ 20 & \text{quatrocentos anos espalhando a melhor música que já foi ouvida, os violinos, violoncelos e violas}\\ & \text{de Cremona estão atingindo seu limite. Logo estarão frágeis demais para serem tocados e serão,}\\ & \text{segundo Fausto Cacciatori, curador do Museu do Violino de Cremona, “colocados para dormir”.}\\ \\ & \text{Antecipando-se ao sono derradeiro, os moradores de Cremona criaram o Projeto Stradivarius. “Por}\\ & \text{cinco semanas, quatro músicos, tocando dois violinos, uma viola e um violoncelo, farão centenas de}\\ 25 & \text{escalas e arpejos, usando técnicas diferentes com arcos, ou dedilhando as cordas”, sob “trinta e dois}\\ & \text{microfones de alta sensibilidade”. Três engenheiros de som, trancados num quartinho à prova de}\\ & \text{qualquer ruído, no auditório do museu, gravarão cada uma das centenas de milhares de variações}\\ & \text{sonoras, de modo que, no futuro, será possível compor músicas com o som dos Stradivarius.}\\ \\ & \text{O projeto já estava quase saindo do papel em 2017 quando os idealizadores perceberam que o barulho}\\ 30 & \text{em torno do museu impossibilitaria as gravações. O prefeito de Cremona, então, permitiu que as ruas}\\ & \text{da região fossem fechadas até que a última nota fosse imortalizada. A cidade calou-se e os Stradivarius}\\ & \text{começaram a cantar.}\\ \\ & \text{Até meados de fevereiro, os 72267 moradores da cidadezinha italiana deixarão de buzinar suas}\\ & \text{lambretas, “nonas” evitarão gritar às janelas e amigos cochicharão pelas mesas dos cafés para que}\\ 35 & \text{daqui a quatrocentos anos um garoto em Cremona, Mumbai ou Reykjavik possa compor uma}\\ & \text{música com as notas únicas e inimitáveis saídas de instrumentos feitos à mão por um homem}\\ & \text{que morreu quase um milênio antes de esse garoto nascer. Acho que é disso que estamos falando}\\ & \text{quando falamos em civilização.} \end{array}$
(ANTONIO PRATA Adaptado de www1.folha.uol.com.br, 27/01/2019)
* Luthier: profissional especializado em instrumentos de cordas
Ao enfatizar a atitude de curiosidade no último parágrafo, pode-se inferir a seguinte proposta do autor para o problema que debate:
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