5101520253035A mateˊria saiu no New York Times, foi publicada na Folha de Sa˜o Paulo; deveria ser bibliografiaobrigatoˊria do ensino fundamental aˋ poˊs-graduac¸a˜o, deveria ser colada aos postes, lanc¸ada de avio˜es,viralizada nas redes sociais, impressa em santinhos, guardada na carteira, no bolso ou no sutia˜ e lidatoda vez que a desilusa˜o, o desespero, a melancolia ou mesmo o teˊdio batesse na porta, batesse na aorta:“Para salvar Stradivarius, uma cidade inteira fica em sileˆncio”.Antonio Stradivari viveu entre 1644 e 1737 em Cremona, norte da Itaˊlia, cidadezinha que hojeconta com 72267 habitantes. Durante algumas deˊcadas dos seˊculos XVII e XVIII, Stradivariproduziu instrumentos de corda, como violinos, cujos sons quase quatro seˊculos de conhecimentoacumulado na˜o foram capazes de igualar.Por muito tempo permaneceu um misteˊrio o que fazia aqueles instrumentos ta˜o diferentes dosdemais, fabricados antes ou depois. Estudos recentes, poreˊm, mostraram que, para aleˊm da artesaniamagistral do luthier*, um tratamento quıˊmico dado aˋ madeira, aˋ eˊpoca da fabricac¸a˜o, interfere naqualidade do som dos instrumentos.O tempo de uso tambeˊm entra na equac¸a˜o: a secura da madeira e a distaˆncia entre as fibras, causadapela oxidac¸a˜o, sa˜o razo˜es pelas quais, segundo o dr. Hwan-Ching Tai, autor de um estudo de 2016,“esses velhos violinos vibram mais livremente, o que permite a eles expressar uma gama mais amplade emoc¸o˜es”.Se eˊ verdade que os violinos Stradivarius, como muitos vinhos, melhoraram com o tempo, eˊinexoraˊvel que, em algum momento, avinagrem. Pois esse momento se aproxima: depois de quasequatrocentos anos espalhando a melhor muˊsica que jaˊ foi ouvida, os violinos, violoncelos e violasde Cremona esta˜o atingindo seu limite. Logo estara˜o fraˊgeis demais para serem tocados e sera˜o,segundo Fausto Cacciatori, curador do Museu do Violino de Cremona, “colocados para dormir”.Antecipando-se ao sono derradeiro, os moradores de Cremona criaram o Projeto Stradivarius. “Porcinco semanas, quatro muˊsicos, tocando dois violinos, uma viola e um violoncelo, fara˜o centenas deescalas e arpejos, usando teˊcnicas diferentes com arcos, ou dedilhando as cordas”, sob “trinta e doismicrofones de alta sensibilidade”. Treˆs engenheiros de som, trancados num quartinho aˋ prova dequalquer ruıˊdo, no auditoˊrio do museu, gravara˜o cada uma das centenas de milhares de variac¸o˜essonoras, de modo que, no futuro, seraˊ possıˊvel compor muˊsicas com o som dos Stradivarius.O projeto jaˊ estava quase saindo do papel em 2017 quando os idealizadores perceberam que o barulhoem torno do museu impossibilitaria as gravac¸o˜es. O prefeito de Cremona, enta˜o, permitiu que as ruasda regia˜o fossem fechadas ateˊ que a uˊltima nota fosse imortalizada. A cidade calou-se e os Stradivariuscomec¸aram a cantar.Ateˊ meados de fevereiro, os 72267 moradores da cidadezinha italiana deixara˜o de buzinar suaslambretas, “nonas” evitara˜o gritar aˋs janelas e amigos cochichara˜o pelas mesas dos cafeˊs para quedaqui a quatrocentos anos um garoto em Cremona, Mumbai ou Reykjavik possa compor umamuˊsica com as notas uˊnicas e inimitaˊveis saıˊdas de instrumentos feitos aˋ ma˜o por um homemque morreu quase um mileˆnio antes de esse garoto nascer. Acho que eˊ disso que estamos falandoquando falamos em civilizac¸a˜o.
(ANTONIO PRATA Adaptado de www1.folha.uol.com.br, 27/01/2019)
* Luthier: profissional especializado em instrumentos de cordas
Ao enfatizar a atitude de curiosidade no último parágrafo, pode-se inferir a seguinte proposta do autor para o problema que debate: