UERJ 2006 - Questões
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O suor e a lágrima
Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41 (9). No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos (5) e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre (6), que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor (7) – o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti (13). Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido (1) e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva (8). Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor (14), que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira (2), mas a todo instante o usava para enxugar-se – caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano (10).
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio (11). Nunca tive sapatos tão brilhantes (3), tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso (12). Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias (4).
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa (15). Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão (16). Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.
(CONY, Carlos Heitor. Folha de S. Paulo, 19/02/2001.)
A tomada de consciência do personagem-narrador acerca dos abismos sociais vai-se aguçando gradativamente a partir de certo ponto da narrativa.
Os primeiros sinais dessa tomada de consciência estão adequadamente representados por um processo de adjetivação presente na seguinte alternativa:
O suor e a lágrima
Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41 (9). No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos (5) e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre (6), que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor (7) – o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti (13). Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido (1) e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva (8). Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor (14), que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira (2), mas a todo instante o usava para enxugar-se – caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano (10).
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio (11). Nunca tive sapatos tão brilhantes (3), tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso (12). Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias (4).
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa (15). Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão (16). Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.
(CONY, Carlos Heitor. Folha de S. Paulo, 19/02/2001.)
A crônica de Carlos Heitor Cony é uma crítica à hierarquia econômico-social que prevalece em nossa sociedade. O ponto de vista do narrador sobre essa hierarquia está exemplificado por meio de metáfora em:
A aldeia que nunca mais foi a mesma
Era uma aldeia de pescadores de onde a alegria fugira (5), e os dias e as noites se sucediam numa monotonia sem fim (...).
Até que o mar, quebrando um mundo, anunciou de longe que trazia nas suas ondas coisa nova, desconhecida, forma disforme que flutuava, e todos vieram à praia, na espera... E ali ficaram, até que o mar, sem se apressar, trouxe a coisa e a depositou na areia, surpresa triste, um homem morto...
E o que é que se pode fazer com um morto, se não enterrá-lo (1)? Tomaram-no então para os preparativos de funeral, que naquela aldeia ficavam a cargo das mulheres: às vezes é mais grato preparar os mortos para a sepultura que acompanhar os vivos na morte (6) que perderam ao viver. Foi levado pra uma casa, os homens de fora, olhando...
(...)
As mãos começaram o trabalho, e nada se dizia, só os rostos tristes... Até que uma delas, um leve tremor no canto dos lábios, balbuciou: (2)
– “É, se tivesse vivido entre nós, teria de se ter curvado sempre para entrar em nossas casas. É muito alto...”
E todas assentiram com o silêncio.
(...)
Foi então que uma outra, olhando aquelas mãos enormes, inertes, disse as saudades que arrepiavam a sua pele:
– “Estas mãos... Que terão feito? Terão tomado no seu vazio um rosto de mulher? Terão sido ternas? Terão sabido amar?”
E elas sentiram que coisas belas e sorridentes, há muito esquecidas, passadas por mortas, nas suas funduras, saíam do ouvido e vinham, mansas, se dizer no silêncio do morto. A vida renascia na morte graciosa de um morto desconhecido (7) e que, por isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os desejos que a morte em vida proibira... (3)
E os homens, do lado de fora, perceberam que algo estranho acontecia: os rostos das mulheres, maçãs em fogo, os olhos brilhantes, os lábios úmidos, o sorriso selvagem, e compreenderam o milagre: vida que voltava, ressurreição de mortos... E tiveram ciúmes do afogado...(10) Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados, e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?), e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?) (9)...
Termina a estória dizendo que eles, finalmente, o enterraram (8).
Mas a aldeia nunca mais foi a mesma...
Não, não é à toa que conto esta estória. Foi quando eu soube da morte – ela cresceu dentro de mim. Claro que eu já suspeitava: os cavalos de guerra odeiam crianças, e o bronze das armas odeia canções, especialmente quando falam de flores (4), e não se ouve o ruflar lúgubre dos tambores da morte. (...) Foi então que me lembrei da estória. Não, foi ela que se lembrou de mim, e veio, para dar nome aos meus sentimentos, e se contou de novo. Só que agora os rostos anônimos viraram rostos que eu vira, caminhando, cantando, seguindo a canção, risos que corriam para ver a banda passar contando coisas de amor, os rojões, as buzinas, as panelas, sinfonia que se tocava, sobre a desculpa de um morto...
Mas não era isto, não era o morto: era o desejo que jorrava, vida, mar que saía de funduras reprimidas e se espraiava como onda, espumas e conchinhas, mansa e brincalhona... (...)
(ALVES, Rubem. Folha de S. Paulo, 19/05/1984.)
A metonímia é uma figura de linguagem que consiste no uso de uma palavra em lugar de outra, estabelecendo-se entre elas diferentes relações de sentido.
O fragmento que apresenta um exemplo de metonímia construída por meio da relação entre matéria e objeto é:
O suor e a lágrima
Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41 (9). No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos (5) e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre (6), que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor (7) – o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti (13). Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido (1) e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva (8). Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor (14), que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira (2), mas a todo instante o usava para enxugar-se – caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano (10).
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio (11). Nunca tive sapatos tão brilhantes (3), tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso (12). Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias (4).
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa (15). Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão (16). Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.
(CONY, Carlos Heitor. Folha de S. Paulo, 19/02/2001.)
Na composição da narrativa, certos elementos linguísticos explicitam circunstâncias diversas, imprimindo coerência ao texto.
O fragmento que apresenta um desses elementos destacado e a circunstância por ele expressa é:
A aldeia que nunca mais foi a mesma
Era uma aldeia de pescadores de onde a alegria fugira (5), e os dias e as noites se sucediam numa monotonia sem fim (...).
Até que o mar, quebrando um mundo, anunciou de longe que trazia nas suas ondas coisa nova, desconhecida, forma disforme que flutuava, e todos vieram à praia, na espera... E ali ficaram, até que o mar, sem se apressar, trouxe a coisa e a depositou na areia, surpresa triste, um homem morto...
E o que é que se pode fazer com um morto, se não enterrá-lo (1)? Tomaram-no então para os preparativos de funeral, que naquela aldeia ficavam a cargo das mulheres: às vezes é mais grato preparar os mortos para a sepultura que acompanhar os vivos na morte (6) que perderam ao viver. Foi levado pra uma casa, os homens de fora, olhando...
(...)
As mãos começaram o trabalho, e nada se dizia, só os rostos tristes... Até que uma delas, um leve tremor no canto dos lábios, balbuciou: (2)
– “É, se tivesse vivido entre nós, teria de se ter curvado sempre para entrar em nossas casas. É muito alto...”
E todas assentiram com o silêncio.
(...)
Foi então que uma outra, olhando aquelas mãos enormes, inertes, disse as saudades que arrepiavam a sua pele:
– “Estas mãos... Que terão feito? Terão tomado no seu vazio um rosto de mulher? Terão sido ternas? Terão sabido amar?”
E elas sentiram que coisas belas e sorridentes, há muito esquecidas, passadas por mortas, nas suas funduras, saíam do ouvido e vinham, mansas, se dizer no silêncio do morto. A vida renascia na morte graciosa de um morto desconhecido (7) e que, por isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os desejos que a morte em vida proibira... (3)
E os homens, do lado de fora, perceberam que algo estranho acontecia: os rostos das mulheres, maçãs em fogo, os olhos brilhantes, os lábios úmidos, o sorriso selvagem, e compreenderam o milagre: vida que voltava, ressurreição de mortos... E tiveram ciúmes do afogado...(10) Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados, e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?), e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?) (9)...
Termina a estória dizendo que eles, finalmente, o enterraram (8).
Mas a aldeia nunca mais foi a mesma...
Não, não é à toa que conto esta estória. Foi quando eu soube da morte – ela cresceu dentro de mim. Claro que eu já suspeitava: os cavalos de guerra odeiam crianças, e o bronze das armas odeia canções, especialmente quando falam de flores (4), e não se ouve o ruflar lúgubre dos tambores da morte. (...) Foi então que me lembrei da estória. Não, foi ela que se lembrou de mim, e veio, para dar nome aos meus sentimentos, e se contou de novo. Só que agora os rostos anônimos viraram rostos que eu vira, caminhando, cantando, seguindo a canção, risos que corriam para ver a banda passar contando coisas de amor, os rojões, as buzinas, as panelas, sinfonia que se tocava, sobre a desculpa de um morto...
Mas não era isto, não era o morto: era o desejo que jorrava, vida, mar que saía de funduras reprimidas e se espraiava como onda, espumas e conchinhas, mansa e brincalhona... (...)
(ALVES, Rubem. Folha de S. Paulo, 19/05/1984.)
Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados, e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?), e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?)... (9)
As passagens apresentadas entre parênteses relacionam-se com as passagens que lhes são imediatamente anteriores, caracterizando uma estrutura de argumentação específica.
O tipo de relação estabelecida entre essas passagens e o valor argumentativo nela presente são:
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