A aldeia que nunca mais foi a mesma

Era uma aldeia de pescadores de onde a alegria fugira (5), e os dias e as noites se sucediam numa monotonia sem fim (...).

Até que o mar, quebrando um mundo, anunciou de longe que trazia nas suas ondas coisa nova, desconhecida, forma disforme que flutuava, e todos vieram à praia, na espera... E ali ficaram, até que o mar, sem se apressar, trouxe a coisa e a depositou na areia, surpresa triste, um homem morto...

E o que é que se pode fazer com um morto, se não enterrá-lo (1)? Tomaram-no então para os preparativos de funeral, que naquela aldeia ficavam a cargo das mulheres: às vezes é mais grato preparar os mortos para a sepultura que acompanhar os vivos na morte (6) que perderam ao viver. Foi levado pra uma casa, os homens de fora, olhando...

(...)

As mãos começaram o trabalho, e nada se dizia, só os rostos tristes... Até que uma delas, um leve tremor no canto dos lábios, balbuciou: (2)

– “É, se tivesse vivido entre nós, teria de se ter curvado sempre para entrar em nossas casas. É muito alto...”

E todas assentiram com o silêncio.

(...)

Foi então que uma outra, olhando aquelas mãos enormes, inertes, disse as saudades que arrepiavam a sua pele:

– “Estas mãos... Que terão feito? Terão tomado no seu vazio um rosto de mulher? Terão sido ternas? Terão sabido amar?”

E elas sentiram que coisas belas e sorridentes, há muito esquecidas, passadas por mortas, nas suas funduras, saíam do ouvido e vinham, mansas, se dizer no silêncio do morto. A vida renascia na morte graciosa de um morto desconhecido (7) e que, por isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os desejos que a morte em vida proibira... (3)

E os homens, do lado de fora, perceberam que algo estranho acontecia: os rostos das mulheres, maçãs em fogo, os olhos brilhantes, os lábios úmidos, o sorriso selvagem, e compreenderam o milagre: vida que voltava, ressurreição de mortos... E tiveram ciúmes do afogado...(10) Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados, e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?), e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?) (9)...

Termina a estória dizendo que eles, finalmente, o enterraram (8).

Mas a aldeia nunca mais foi a mesma...

Não, não é à toa que conto esta estória. Foi quando eu soube da morte – ela cresceu dentro de mim. Claro que eu já suspeitava: os cavalos de guerra odeiam crianças, e o bronze das armas odeia canções, especialmente quando falam de flores (4), e não se ouve o ruflar lúgubre dos tambores da morte. (...) Foi então que me lembrei da estória. Não, foi ela que se lembrou de mim, e veio, para dar nome aos meus sentimentos, e se contou de novo. Só que agora os rostos anônimos viraram rostos que eu vira, caminhando, cantando, seguindo a canção, risos que corriam para ver a banda passar contando coisas de amor, os rojões, as buzinas, as panelas, sinfonia que se tocava, sobre a desculpa de um morto...

Mas não era isto, não era o morto: era o desejo que jorrava, vida, mar que saía de funduras reprimidas e se espraiava como onda, espumas e conchinhas, mansa e brincalhona... (...)

(ALVES, Rubem. Folha de S. Paulo, 19/05/1984.)

Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados, e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?), e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?)... (9)

As passagens apresentadas entre parênteses relacionam-se com as passagens que lhes são imediatamente anteriores, caracterizando uma estrutura de argumentação específica.

O tipo de relação estabelecida entre essas passagens e o valor argumentativo nela presente são: