Leia o trecho a seguir, retirado do livro O Ateneu.

Tínhamos lutado em silêncio, sem que nada mais se ouvisse do que os encontrões pelo soalho. No corredor, entretanto, vimos Aristarco que chegava como em socorro. Bento Alves passou; imobilizou-o com o olhar sem vista, esgazeado, medonho, de quem acaba de perpetrar um homicídio e desapareceu, trôpego, manchado de pó, lábios inflamados, desordem nos cabelos.

Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o adversário, empoeirado e sujo como de rolar sobre escarros.

Respondi-lhe com violência.

“Insolente”! rugiu o diretor. Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com a outra pela nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu. “Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! Bandalhozinho impudente! Confessa-me tudo ou mato-te.”

Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a excitação do primeiro combate; não podia olhar conveniências de respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um escorpião pisado. O diretor arremessou-me ao chão. E, modificando o tom, falou: “Sérgio! ousaste tocar-me!”

– Fui primeiro tocado! repliquei fortemente.

– Criança! Feriste um velho!

Reparei que havia no chão fios brancos de bigode.

– Fui vilmente injuriado, disse.

– Ah! meu filho, ferir a um mestre é como ferir ao próprio pai, e os parricidas serão malditos.

O tom comovido deste final inesperado impressionou-me até o íntimo d’alma. Estava vencido. Fiquei por um minuto horrorizado de mim mesmo. De volta do atordoamento, achei-me só no corredor. A saída dramática do diretor aumentou-me ainda remorsos. Houve uma reação de esforço moral e desatei nervosamente em pranto, chorei a valer, amparando-me ao peitoril de uma janela.

Contava certo com um castigo excepcional, uma cominação qualquer do célebre código do arbítrio, em artigo cujo grau mínimo fosse a expulsão solene.

Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio. Soube que Bento Alves despedira-se do Ateneu na mesma tarde do extraordinário desvario. Acreditei algum tempo que a minha impunidade era um caso especial do afamado sistema das punições morais e que Aristarco delegara ao abutre da minha consciência o encargo da sua justiça e desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só pela futilidade de uma ocorrência, desagradável, não se duvida, mas sem testemunhas.

O caso morreu em segredo de discrição, encontrando-nos eu e o diretor num conchavo bilateral de reserva, como se nada houvesse.

(POMPEIA, Raul. O Ateneu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 200-202).

É evidente, no penúltimo parágrafo do trecho transcrito, a presença de dois tempos: o tempo da história e o tempo do discurso. Assinale a alternativa correta quanto a estes tempos.