Lugares de memória: para não esquecer

O Cais do Valongo, principal porto de entrada de escravizados das Américas, recebeu em 2017 o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, pela Unesco. A distinção define o Valongo, localizado na região portuária do Rio de Janeiro, como um “lugar de memória”, ao lado de outros, como o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, ou a cidade de Hiroshima, no Japão.¹

Inaugurado em 1811, o cais logo se converteu no principal ponto de desembarque de africanos escravizados das três Américas. Localizado a poucos passos do Palácio Real, não era raro aos monarcas brasileiros ver os africanos², apressadamente desembarcados, sendo separados de suas famílias, limpos, vestidos, pesados, tendo seus corpos marcados a ferro.

Começava, então, uma nova viagem. Dessa vez, rumo à tentativa de desterritorialização e de invisibilização dos africanos, de quem se procurava apagar a memória, qualquer laivo de identidade e orgulho que carregavam de suas nações. Vários viajantes passaram pelo Valongo e constataram o triste espetáculo que se apresentava naquele mercado, dentre eles o artista Jean-Baptiste Debret (1768-1848).

Em sua aquarela, aparecem os mesmos “esqueletos” descritos em texto. À direita, o comerciante gorducho (cuja barriga simboliza a fartura) negocia com o proprietário de terras, com seu chapelão e bengala, os detalhes da venda do pequeno garoto postado à sua frente. O artista francês fez questão de caprichar no vazio do ambiente, e nos africanos sem rosto, quase nus, que apenas aguardam pelo destino nas Américas. Um desterro forçado nos campos tropicais do Brasil.

Em 1911, o Cais do Valongo foi aterrado, da mesma maneira como se tentou esconder e esquecer “os males e as lembranças dos tempos da escravidão”. Esse era o discurso civilizatório da Primeira República, que procurava jogar para o Império a conta da escravidão, cuja culpa é de todos nós.

“Redescoberto” 100 anos depois, o Cais do Valongo é hoje um sítio arqueológico que expõe na nossa atualidade as perversões do sistema escravocrata, mas também testemunha a resistência dessas populações. Trata-se do mais importante acervo de vestígios materiais e simbólicos localizado fora da África, com quase 500 mil itens. A expressão “lugar de memória” foi criada pelo historiador francês Pierre Nora. Seu objetivo era justamente evitar o desaparecimento dos registros históricos, como arquivos, monumentos, museus e certos espaços específicos. Podem ser desde objetos materiais e concretos até vestígios imateriais e orais. O importante, porém, é que eles só se convertem, efetivamente, em “lugares de memória”, se a imaginação coletiva investi-los como lugares simbólicos.

Conforme define Alberto da Costa e Silva: “O Brasil é um país extraordinariamente africanizado³. E só a quem não conhece a África pode escapar o quanto há de africano nos gestos, nas maneiras de ser e de viver e no sentimento estético do brasileiro . Por sua vez, em toda a costa atlântica da África, podem-se facilmente reconhecer os brasileirismos. O escravo ficou dentro de nós, qualquer que seja nossa origem.”

LILIA MORITZ SCHWARCZ

Adaptado de nexojornal.com.br, 31/07/2017

um “lugar de memória”, ao lado de outros, como o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, ou a cidade de Hiroshima, no Japão. ¹

A comparação acima inclui o Cais do Valongo no conjunto de lugares de memória pelo reconhecimento do seguinte atributo comum: