VAGABUNDO
Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!
Ando roto, sem bolsos nem dinheiro
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.
(...)
Oito dias lá vão que ando cismado
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora!...
Tenho por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.
O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.
Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.
(...)
Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha,
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.
(Álvares de Azevedo. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000.)
ditoso - feliz
nívea - branca
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!(v. 4)
O verso acima reúne dois traços que podem ser considerados inconciliáveis.
Explicite esses traços e nomeie duas figuras de linguagem que reforçam o significado do verso.