FELICIDADE

Olhou para o céu, certificando-se de que não ia chover (1).

- Passa já pra dentro, Jaú. Olha a carrocinha!

Jaú, costelas à mostra e rabinho impertinente, continuou impassível a se espichar ao sol, num desrespeito sem nome à sua dona e numa ignorância santa das perseguições municipais.

Clarete também teve o bom senso de não insistir (2), o que aliás era uma das suas mais evidentes qualidades. Carregou mais uma vez a boina escarlate sobre o olhar cinemático, bateu a porta com força - té logo, mamãe! - e desceu apressada, sob um sol de rachar pedras, a extensa ladeira para apanhar o bonde, pois tinha de estar às oito e meia, sob pena de repreensão, na estação Sul da Cia. Telefônica.

No bonde, afinal, tirou da bolsa o reloginho-pulseira e deu-lhe corda. Era um bom relógio aquele. Também, era Longines e no rádio do vizinho, que se mudara, um sujeito mal-encarado, ouvira sempre dizer que era o relógio mais afamado do mundo inteiro. Fora presente de seu Rosas quando ela morava na avenida. E, à falta de outra coisa, foi remexendo o seu passado pequenino com a lembrança do seu Rosas.

Rosas. Que nome! Não lhe entrava na cabeça que uma pessoa pudesse se chamar Rosas. Nem Rosas, nem Flores. Que esquisitice, já se viu?

Arregalou os olhos fotogênicos.

- Que amor!

Uma senhora ocupava o banco da frente, com um chapéu, rico, de feltro, enterrado até às sobrancelhas (3).

O solavanco da curva não a deixou ter inveja. Calculou o preço, assim por alto: cento e poucos mil-réis, no mínimo. Quase seu ordenado. Quase... E sem querer voltou a seu Rosas.

Fora ele quem lhe dera aquele reloginho. A mãe torcera o nariz, nada, porém, dissera. Devia contudo ter pensado dela coisas bem feias. Clarete sorriu. O rapaz da ponta, com o Rio Esportivo aberto nas mãos e os olhos pregados nela, sorriu também. Clarete arrumou-lhe em cima um olhar que queria dizer: idiota! e o rapaz zureta afundou os óculos de tartaruga na entrevista do beque carioca sobre o jogo contra os paulistas.

(...)

Praia de Botafogo. Meu Deus! Pendurou-se nervosamente na campainha (4), saltou e atravessou a rua sob o olhar perseguidor da rapaziada que ia no bonde.

Houve tempo em que Clarete se chamava simplesmente Clara. Tinha, então, os cabelos compridos, pestanas sem rímel, sobrancelhas cerradas, uma magreza de menina que ajuda a mãe na vida difícil e um desejo indisfarçável de acabar com as sardas que lhe pintalgavam as faces e punham no narizinho arrebitado uma graça brejeira.

Trabalhava numa fábrica de caixas de papelão e vinha para a casa às quatro e meia, quando não havia serão, doidinha de fome e recendendo a cola de peixe.

Quando ela passava, os meninos buliam na certa:

- Ovo de tico-tico! Ovo de tico-tico!

Ela arredondava-lhes um palavrãozinho que aprendera na fábrica com a Santinha e continuava a subir a ladeira comprida, rebolando, provocante. (...)

Verdade é que eles a chamavam de ovo de tico-tico, menos pelas sardas do que por despeito. Ela não dava confiança a nenhum - vê lá!... - e no coração deles andava uma loucura por Clarete. Ai! se ela quisesse!... - suspiravam todos intimamente. Ela, porém, não queria, estava mais que visto. E eles ficavam se regalando amoravelmente com o palavrãozinho jogado assim num desprezo superior, pela boca minúscula que todas as noites aparecia, tentadoramente se ofertando, nos seus sonhos juvenis.

(Marques Rebello. Contos reunidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.)

cinemático – que se movimenta em várias direções

arrumar-lhe – dirigir-lhe

beque – zagueiro

pintalgar – pintar

Considere, nas passagens abaixo, as orações iniciadas por preposição:

Olhou para o céu, certificando-se de que não ia chover. (1)

Clarete também teve o bom senso de não insistir, (2)

Aponte o valor sintático de cada uma dessas orações.