A PRESSA DE ACABAR

Evidentemente nós sofremos agora em todo o mundo de uma dolorosa moléstia; a pressa de acabar. Os nossos avós nunca tinham pressa. Ao contrário. Adiar, aumentar, era para eles a suprema delícia. Como os relógios, nesses tempos remotos, não eram maravilhas de precisão, os homens mediam os dias com todo o cuidado da atenção (5).

Sim! Em tudo, essa estranha pressa de acabar se ostenta como a marca do século (1). Não há mais livros definitivos, quadros destinados a não morrer, ideias imortais. Trabalha-se muito mais, pensa-se muito mais, ama-se mesmo muito mais (9),apenas sem fazer a digestão e sem ter tempo de a fazer.

Antigamente as horas eram entidades que os homens conheciam imperfeitamente. Calcular a passagem das horas era tão complicado como calcular a passagem dos dias. Inventavam-se relógios de todos os moldes e formas (6).

Hoje, nós somos escravos das horas, dessas senhoras inexoráveis* que não cedem nunca (2) e cortam o dia da gente numa triste migalharia de minutos e segundos. Cada hora é para nós distinta, pessoal, característica, porque cada hora representa para nós o acúmulo de várias coisas que nós temos pressa de acabar. O relógio era um objeto de luxo. Hoje até os mendigos usam um marcador de horas, porque têm pressa, pressa de acabar.

O homem mesmo será classificado, afirmo eu já com pressa, como o Homus cinematographicus.Nós somos uma delirante sucessão de fitas cinematográficas (3). Em meia hora de sessão tem-se um espetáculo multiforme e assustador (10) cujo título geral é; Precisamos acabar depressa.

O homem de agora é como a multidão; ativo e imediato (7). Não pensa, faz; não pergunta, obra; não reflete, julga (11).

O homem cinematográfico resolveu a suprema insanidade; encher o tempo, atopetar o tempo, abarrotar o tempo, paralisar o tempo para chegar antes dele (4). Todos os dias (dias em que ele não vê a beleza do sol ou do céu e a doçura das árvores porque não tem tempo, diariamente, nesse número de horas retalhadas em minutos e segundos que uma população de relógios marca, registra e desfia), o pobre diabo sua, labuta, desespera com os olhos fitos nesse hipotético poste (8) de chegada que é a miragem da ilusão.

Uns acabam pensando que encheram o tempo, que o mataram de vez (12). Outros desesperados vão para o hospício ou para os cemitérios. A corrida continua. E o Tempo também, o Tempo insensível e incomensurável, o Tempo infinito para o qual todo o esforço é inútil, o Tempo que não acaba nunca! É satanicamente doloroso. Mas que fazer?

*inexoráveis – que não cedem, implacáveis

(João do RioAdaptado de Cinematógrafo: crônicas cariocas. Rio de Janeiro: ABL, 2009.)

essa estranha pressa de acabar se ostenta como a marca do século. (1)

O trecho acima contém o eixo temático da crônica escrita por João do Rio em 1909.

Na construção da opinião presente nesse trecho, é possível identificar um procedimento de: