CANÇÃO DO VER

Fomos rever o poste.

O mesmo poste de quando a gente brincava de pique

e de esconder.

Agora ele estava tão verdinho!

O corpo recoberto de limo e borboletas.

Eu quis filmar o abandono do poste.

O seu estar parado.

O seu não ter voz.

O seu não ter sequer mãos para se pronunciar com

as mãos.

Penso que a natureza o adotara em árvore.

Porque eu bem cheguei de ouvir arrulos de passarinhos

que um dia teriam cantado entre as suas folhas.

Tentei transcrever para flauta a ternura dos arrulos.

Mas o mato era mudo.

Agora o poste se inclina para o chão - como alguém

que procurasse o chão para repouso.

Tivemos saudades de nós.

(Manoel de Barros.

Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.)

Glossário:

arrulos – canto ou gemido de rolas e pombas

O título “Canção do ver” reúne duas esferas diferentes dos sentidos humanos: audição e visão. No entanto, no decorrer do poema, a visão predomina sobre a audição.

Os dois elementos que confirmam isso são: