Piaimã

Mário de Andrade

A inteligência do herói estava muito perturbada (6). Acordou com os berros da bicharia lá em baixo (14) nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagüi-açu (...) não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados (10) berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas (1). Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa (7) de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe-d’água, em bulhas de sarapantar.

Então resolveu ir brincar com a Máquina (15) pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas (8) e falaram que isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata (11). A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto (2). Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói!

(...)

Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina (3). A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina (12) sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim (16). Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranha-céu com os manos, Macunaíma concluiu:

- Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles (13) nesta luta. Há empate.

Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discursos (9) porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos (4) só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: (5) os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe.

(Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.)

Vocabulário:

Piaimã - personagem do romance

sagui-açu, saguim - macacos pequenos

cláxon - buzina externa nos automóveis antigos

boitatá - cobra-de-fogo, na mitologia tupi-guarani

inajá - palmeira de tamanho médio

curuatá - flor de palmeira

Tupã - entidade da mitologia tupi-guarani

Mãe-d’água - espécie de sereia das águas amazônicas

bulha - confusão de sons

sarapantar - espantar

cunhã - mulher jovem, em tupi

Alguns vocábulos possuem a propriedade de retomar integralmente uma ideia já apresentada antes.

Essa propriedade é observada no vocábulo grifado em: