TEXTO I
Mais Infância
A cidade onde nasci era cercada de morros azuis, cobertos de mato povoado por princesas e castelos e animais de lenda, o Unicórnio, os cisnes que eram príncipes, os corvos que eram meninos enfeitiçados (1).
Bruxas voavam em vassouras, anões cavavam em minas de ouro enquanto Branca de Neve mordia a maçã da morte, a princesa beijava o sapo, e João e Maria tinham sido abandonados pelos pais.
- Pai, como é que deixaram os filhinhos no mato escuro só porque não tinham comida?
- Eles não sabiam o que fazer.
- E vocês nos deixariam na floresta se a nossa comida acabasse?
- Claro que não, que pergunta.
- Mas aqueles pais da história deixaram...
Ele afagava minha cabeça, enternecido e divertido:
- Filha, o pai não vai te largar no mato nunca, fica tranquila.
- Mãe, por que o pai da Branca de Neve casou com uma rainha má que não gostava da filhinha dele?
- Não sei, para de perguntar bobagem. Já naquele tempo eu gostava de criar meu próprio breve exílio, onde seria rainha de um momento. O esconderijo podia ser embaixo da mesa da sala - eu me considerava invisível atrás da toalha comprida, de franjas; sob a escrivaninha de meu pai; dentro de um armário; entre arbustos no jardim.
Era uma forma de ficar tranquila para ruminar coisas apenas adivinhadas, ou respirar no mesmo ritmo do mundo: dos insetos, dos talos de capim.
Era um jeito de ter uma intimidade que pouco me permitiam: criança que demais quieta podia estar doente, demais isolada devia andar triste, demais sonhadora precisava de atividades e ocupações. Disciplina sobretudo, disciplina para compensar aqueles devaneios e a dificuldade de me enquadrar.
Então às vezes eu arranjava uma imaginária concha onde me sentia livre. Eu tentava nem respirar, para que não se desfizesse a magia.
Era também um proteger-me não sabia bem de quê. Ali nenhum aborrecimento cotidiano, nenhum mal me alcançaria. Eu não sabia bem que ameaça era aquela, mas era onipresente, onipotente e perturbadora.
Rodeando a casa havia hortênsias de tonalidades azul-pálido, azul-cobalto, arroxeadas, lilases ou totalmente violeta, em vários tons de rosa, do brilhante ao quase branco. Eram o meu castelo verde-escuro de onde brotava o inexplicado das cores.
Mas a castelã de trancinhas finas não aguentava muito tempo, logo emergia coberta de pó, e corria para a certeza do que era familiar (2).
Outras vezes, audaciosa, eu me afastava mais da casa e me deitava de costas na terra morna no meio de uns pés de milho no pomar. Ver o céu daquele prisma, recortado entre as folhas como espadas, era espiar por muitas portas. A perspectiva diferente que dali, deitada, eu tinha do mundo e de mim mesma era como balançar na borda de um penhasco bem alto, acima do mar.
Depois vinha o susto: o real era este aqui debaixo ou aquele, móvel e livre?
Antes que a mãe chamasse, antes que o jardineiro viesse me buscar, eu me assustava e queria de novo o simples e o familiar. Fantasia demais seria uma viagem sem volta? Ninguém - nem eu mesma - me encontraria, nunca mais?
(...)
(LUFT, Lya. Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004.)
A cidade onde nasci era cercada de morros azuis, cobertos de mato povoado por princesas e castelos e animais de lenda, o Unicórnio, os cisnes que eram príncipes, os corvos que eram meninos enfeitiçados. (1)
No parágrafo acima, fantasia e realidade misturam-se no imaginário infantil da narradora.
A) Destaque, dessa passagem, dois elementos representativos da realidade e dois elementos representativos da fantasia que a eles se contraponham.
B) Em busca de esclarecimentos para suas dúvidas, a narradora inicia um diálogo com seus pais.
Transcreva, desse fragmento, a única fala com valor argumentativo utilizada pelos pais na conversa com a filha. Justifique sua resposta.