TEXTO IV

Romance II ou Do Ouro Incansável

Mil bateias vão rodando

sobre córregos escuros;

a terra vai sendo aberta

por intermináveis sulcos;

infinitas galerias

penetram morros profundos.

De seu calmo esconderijo,

o ouro vem, dócil e ingênuo;

torna-se pó, folha, barra,

prestígio, poder, engenho...

É tão claro! - e turva tudo:

honra, amor e pensamento.

Borda flores nos vestidos,

sobe a opulentos altares,

traça palácios e pontes,

eleva os homens audazes,

e acende paixões que alastram

sinistras rivalidades.

Pelos córregos, definham

negros, a rodar bateias.

Morre-se de febre e fome

sobre a riqueza da terra:

uns querem metais luzentes,

outros, as redradas pedras.

Ladrões e contrabandistas

estão cercando os caminhos;

cada família disputa

privilégios mais antigos;

os impostos vão crescendo

e as cadeias vão subindo.

Por ódio, cobiça, inveja,

vai sendo o inferno traçado.

Os reis querem seus tributos,

- mas não se encontram vassalos.

Mil bateias vão rodando,

mil bateias sem cansaço.

Mil galerias desabam;

mil homens ficam sepultos;

mil intrigas, mil enredos

prendem culpados e justos;

já ninguém dorme tranquilo,

que a noite é um mundo de sustos.

Descem fantasmas dos morros,

vêm almas dos cemitérios:

todos pedem ouro e prata,

e estendem punhos severos,

mas vão sendo fabricadas

muitas algemas de ferro.

(MEIRELES, Cecília. Poesias completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.)

Glossário:

peneiras de madeira

depuradas, selecionadas

O poema de Cecília Meireles apresenta um tom épico e revela afinidades com as propostas que distinguiram a chamada geração de 30 da primeira geração modernista.

  1. a) Indique duas características do poema relacionadas ao gênero épico.

  2. b) Aponte um aspecto em comum entre a perspectiva da autora sobre o país, revelada nesse texto, e a que predominou na obra de romancistas da geração de 30.