Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado (2), vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde (1) no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom (3), como outro não existiu e nem pode haver igual.
Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes (5). Era decrépito mesmo a distância (4) (...).
Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado, dado, trocado e revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera um tropeiro do Indaiá, baleado pelas costas (6). Trouxera, um dia, do pasto - coisa muito rara para essa raça de cobras - uma jararacussu, pendurada no focinho, como linda tromba negra com diagonais amarelas (8), da qual não morreu (9) porque a lua era boa (7) e o benzedor acudiu pronto. Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a última intitulação, de baralho, de manilha; mas, vida a fora, por amos e anos, outras tivera, sempre involuntariamente(...).
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia-noite - nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.
(“O burrinho pedrês” - Guimarães Rosa)
Obs.:
pedrês - que é pintalgado de branco e preto;
truque - truco; um certo jogo de cartas;
manilha - um tipo de jogo de cartas em que o sete de todos os naipes tem o maior valor.
Assinale a alternativa que apresenta uma característica de escritura corretamente atribuída ao autor e corretamente exemplificada.