Texto V
Era um burrinho pedrês, miúdo e resignado, vindo de Passa-Tempo, Conceição do Serro, ou não sei onde no sertão. Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão bom, como outro não existiu e nem pode haver igual.
Agora, porém, estava idoso, muito idoso. Tanto, que nem seria preciso abaixar-lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos dos dentes. Era decrépito mesmo a distância (...).
Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado, dado, trocado e revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera um tropeiro do Indaiá, baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do pasto – coisa muito rara para essa raça de cobras – uma jararacussu, pendurada no focinho, como linda tromba negra com diagonais amarelas, da qual não morreu porque a lua era boa e o benzedor acudiu pronto.Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a última intitulação, de baralho, de manilha; mas, vida a fora, por amos e anos, outras tivera, sempre involuntariamente(...).
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite – nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais.
(“O burrinho pedrês” – Guimarães Rosa)
Obs.: pedrês – que é pintalgado de branco e preto; truque – truco; um certo jogo de cartas; manilha – um tipo de jogo de cartas em que o sete de todos os naipes tem o maior valor.
Texto VI
Vou divulgar uma anedota, mas uma anedota no genuíno sentido do vocábulo (1), que o vulgo ampliou às historietas de pura invenção. Esta é verdadeira; podia citar algumas pessoas que a sabem tão bem como eu (2). Nem ela andou recôndita, senão por falta de um espírito repousado, que lhe achasse a filosofia. (...) Pela minha parte (3) creio ter decifrado este caso de empréstimo; ides ver se me engano (4).
E, para começar, emendemos Sêneca. Cada dia, ao parecer daquele moralista, é, em si mesmo, uma vida singular; por outros termos, uma vida dentro da vida. Não digo que não; mas por que não acrescentou ele que muitas vezes uma só hora é a representação de uma vida inteira?
("O empréstimo" - Machado de Assis)
Obs.:
recôndita - ignorada, escondida;
Sêneca - filósofo latino; escreveu acerca de tendências morais.
Assinale a alternativa correta sobre o fragmento, início do relato que trata de um empréstimo financeiro.