Em Angústia de Graciliano Ramos, encontramos sequências instigantes:
Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo.
Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e preguiçando, indecentes.
(...)
Fomos morar na vila. Meteram-me na escola de seu Antônio Justino, para desasnar, pois, como disse Camilo quando me apresentou ao mestre, eu era um cavalo de dez anos e não conhecia a mão direita. Aprendi leitura, o catecismo, a conjugação dos verbos. O professor dormia durante as lições. E a gente bocejava olhando as paredes, esperando que uma réstia chegasse ao risco de lápis que marcava duas horas. Saíamos em algazarra.
(Graciliano Ramos, Angústia. Rio de Janeiro:Ed. Record, 56.ed., 2003, p. 8-9 e 15).
a) Que processos permitem as construções ‘preguiçando’ e ‘desasnar’ na língua?
b) Se substituirmos ‘preguiçando’ por ‘descansando’ e ‘desasnar’ por ‘aprender’, observamos uma relação diferente com a poesia da língua. Explicite essa diferença.
c) O uso de ‘desasnar’ pode nos remeter, entre outras palavras, a ‘desemburrecer’ e ‘desemburrar’. No Dicionário Houaiss da língua portuguesa (ed. Objetiva, 2001), o verbete ‘desemburrar’ apresenta como acepções tanto ‘livrar- se da ignorância’, quanto ‘perder o enfezamento’, e marca sua etimologia como des + emburrar.
Seguindo nossa consulta, encontramos no verbete ‘emburrar’ o ano de 1647 que, segundo a Chave do Dicionário Houaiss, indica a “data em que [essa palavra] entrou no português”. A fonte dessa datação é a obra Thesouro da lingoa portuguesa composta pelo Padre D. Bento Pereyra, publicada em Lisboa.
Embora ‘desemburrecer’ não apareça no dicionário, encontramos ‘emburrecer’, cuja entrada no português, segundo o Houaiss, data de 1998, atestada pela obra de Celso Pedro Luft Dicionário prático de regência verbal, publicada em São Paulo.
O verbete ‘desasnar’ data de 1713, atestado pela obra Vocabulário portugueza e latino de Rafael Bluteau, publicada em Coimbra- Lisboa. Tendo em vista as observações acima apresentadas - a presença ou não desses verbetes no dicionário, as datas de entrada no português e as fontes que atestam essas entradas - o que se pode compreender sobre a relação entre o dicionário e a língua?