Considere o poema abaixo:

INVENTÁRIO

Povoam o escritório

vários utensílios

uns bastante sóbrios

outros indiscretos

Por exemplo: a mesa

é sóbria. Rumina

todos os papéis

no oco das gavetas

O que a mesa expele

para a superfície

é simples dejeto

livre de mistério

O arquivo também

é móvel discreto

e diz muito pouco

de interesse humano

A caneta, o lápis

o papel, o cesto

são só instrumentos

sem vontade própria

Dois os indiscretos:

minhas duas mãos –

úlcera no estômago

da repartição

Aparentemente

peças quase iguais

às demais: os mesmos

modos funcionais

Contudo é preciso

vê-las em sua marca:

no rastro dos dedos

no selo do gesto

Ali onde transgridem

a ética da classe

que proíbe os objetos

de serem pessoais

Onde desconhecem

o acordo em vigor

que as coisas transforma

em armas submissas

Não pactuam - hostis

minhas duas mãos

acidulam o ar

da repartição

(Francisco Alvim, Amostra Grátis. In: Poesias Reunidas (1968-1988). São Paulo, Duas Cidades, 1988.)

  1. A) De qual critério se serve o poeta para classificar as diferenças entre os “vários utensílios” que “povoam o escritório”? Por que essa classificação destoa tanto da nossa percepção habitual?

  2. B) Como aparece a presença humana em meio ao ambiente da repartição?