Lembro de uma crônica de João Saldanha. Falava das opiniões de um técnico do Flamengo, não lembro quem era, a propósito de Júnior (2), aquele lateral e depois jogador de meio-campo (12), de quem me lembro bem. O técnico achava que Júnior atacava demais, que tinha que ficar (3); afinal, era lateral. João Saldanha dizia que, se Júnior parasse de atacar, se Júnior ficasse (4), ele deixaria de ir ao Maracanã. E fechava a crônica mais ou menos assim: "Júnior tem que atacar. O que ele precisa é de um cobertor. Tá no dicionário (5). Cobertor: o que cobre. (1)"

A crônica era ótima; a tese sobre tática, também, eu acho (18). Mas "cobertor" não significa ’o que cobre’, Seu João (6), a despeito de isso parecer óbvio (24). Um cobertor cobre, mas nem tudo o que cobre é cobertor. No futebol, por exemplo, não se ouve nenhum narrador (13) ou comentarista (14) dizendo que determinado zagueiro (16) é um bom cobertor. Diz-se que dá cobertura muito bem, que cobre as subidas do lateral (8) etc. São os fatos da língua (9). É só ouvir.

Tenho falado muito disso ultimamente, do feto de que o sentido da palavra pode (20) não (19) depender de sua etimologia e mesmo de sua morfologia. Há outra palavra que serve como bom exemplo para a mesma tese. Trata-se da palavra "trabalhador". Lembro de ter visto (22) e ouvido várias vezes (21) um grande empresário (15) brasileiro dizer de boca cheia (10) que ele também era um trabalhador, porque trabalhava 60 horas por semana.

Pois bem, pode tratar-se de um mau exemplo político (11), mas é um excelente exemplo linguístico. Ao analisar como uma língua funciona de feto, percebe-se que a palavra "trabalhador" tem dois sentidos: num deles, ela significa ’aquele que trabalha’, o oposto de preguiçoso (17). No outro sentido, "trabalhador" significa ’aquele que vive do seu trabalho’, ’aquele que trabalha para os outros’, ’aquele que vende sua força de trabalho’. Pode ser mais ou menos preguiçoso, mais ou menos esforçado (7). A questão é outra: qual o meio de vida do sujeito?

Os empresários também trabalham, claro. Muitos trabalham muito. Muitos deles são, de feto, empresários trabalhadores (23). Mas, certamente, não vivem de seu trabalho, pelo menos não exclusivamente de seu trabalho, já que muitos outros trabalhadores trabalham para eles.

(Adaptado de: POSSENTI, Sírio. Cobertor, trabalhador. In: __. A corda língua e outras croniquinhas de linguista. São Paulo: ALB/Mercado de Letras, 2001. p. 25-27.)

Vários recursos são utilizados no texto para assinalar o estilo informal e próximo à conversa cotidiana que é próprio das crônicas. Assinale a alternativa que apresenta dois segmentos que, em seu contexto, contribuem para isso, pois não seriam empregados em textos escritos formais.