Fuga

De repente você resolve: fugir.

Não sabe para onde nem como

nem por quê (no fundo você sabe

a razão de fugir; nasce com a gente).

É preciso FUGIR.

Sem dinheiro sem roupa sem destino.

Esta noite mesmo. Quando os outros

estiverem dormindo.

Ir a pé, de pés nus.

Calçar botina era acordar os gritos

que dormem na textura do soalho(1).

Levar pão e rosca; para o dia.

Comida sobra em árvores

infinitas, do outro lado do projeto:

um verdor

eterno, frutescente (deve ser).

Tem à beira da estrada, numa venda.

O dono viu passar muitos meninos

que tinham necessidade de fugir

e compreende.

Toda estrada, uma venda

para a fuga.

Fugir rumo da fuga

que não se sabe onde acaba

mas começa em você, ponta dos dedos.

Cabe pouco em duas algibeiras(2)

e você não tem mais do que duas.

Canivete, lenço, figurinhas

de que não vai se separar

(custou tanto a juntar).

As mãos devem ser livres

para pesos, trabalhos, onças

que virão.

Fugir agora ou nunca. Vão chorar,

vão esquecer você? ou vão lembrar-se?

(Lembrar é que é preciso,

compensa toda fuga.)

Ou vão amaldiçoá-lo, pais da Bíblia?

Você não vai saber. Você não volta

nunca.

(Essa palavra nunca, deliciosa.)

Se irão sofrer, tanto melhor.

Você não volta nunca nunca nunca.

E será esta noite, meia-noite.

em ponto.

Você dormindo à meia-noite.

(Menino antigo, 1973.)

(1) soalho: o mesmo que “assoalho”.

(2) algibeira: bolso de roupa.

Identifique uma forma verbal e um substantivo que, bastante retomados ao longo do poema, ilustram seu tema. Em seguida, valendo-se dessa informação, explique a oposição entre o último verso e o restante do poema.