INSTRUÇÃO: A questão toma por base uma passagem de um romance do escritor naturalista brasileiro Aluísio Azevedo (1857-1913).
Afinal conseguiram chegar. Mas, ah! quando a pobre Magdá, toda trêmula e exausta de forças já no tope da pedreira, defrontou com o pavoroso abismo que se precipitava debaixo de seus pés, soltou um grito rápido, fechou os olhos, e teria caído para trás, se o Conselheiro não lhe acode tão a tempo.
- Magdá, minha filha! Então! então!
Ela não respondeu.
- Está aí! está aí o que eu receava! Lembrar-se de subir a estas alturas!... E agora a volta...?
- Pode vossência ficar tranquilo por esse lado, arriscou um dos cavouqueiros, que se havia aproximado, a coçar a cabeça. - Se vossência quiser, eu cá estou para pôr esta senhora lá embaixo, sem que lhe aconteça a ela a menor lástima.
- Ainda bem! respondeu S. Exa. com um suspiro de desabafo.
O trabalhador que se ofereceu para conduzir Magdá era um moço de vinte e tantos anos, vigoroso e belo de força. Estava nu da cintura para cima e a riqueza dos seus músculos, bronzeados pelo sol, patenteava-se livremente com uma independência de estátua. Os cabelos, empastados de suor e pó de pedra, caíam-lhe em desordem sobre a testa e sobre o pescoço, dando-lhe à cabeça uma satírica feição de sensualidade ingênua.
- Vamos! Vamos! apressou o Conselheiro, entregando-lhe a filha.
O rapaz passou um dos braços na cintura de Magdá e com o outro a suspendeu de mansinho pelas curvas dos joelhos, chamando-a toda contra o seu largo peito nu. Ela soltou um longo suspiro e, na inconsciência da síncope, deixou pender molemente a cabeça sobre o ombro do cavouqueiro. E, seguidos de perto pelo velho, lá se foram os dois, abraçados, descendo, pé ante pé, a íngreme irregularidade do caminho.
Era preciso toda atenção e muito cuidado para não rolarem juntos; o moço fazia prodígios de agilidade e de força para se equilibrar com Magdá nos braços. De vez em quando, nos solavancos mais fortes, o pálido e frio rosto da filha do Conselheiro roçava na cara esfogueada do trabalhador e tingia-se logo em cor-de-rosa, como se lhe houvera roubado das faces uma gota daquele sangue vermelho e quente. Ela afinal teve um dobrado respirar de quem acorda, e entreabriu com volúpia os olhos. Não perguntou onde estava, nem indagou quem a conduzia; apenas esticou nervosamente os músculos num espreguiçamento de gozo e estreitou-se em seguida ao peito do rapaz, unindo-se bem contra ele, cingindo-lhe os braços em volta do pescoço com a avidez de quem se apega nos travesseiros aquecidos para continuar um sono gostoso e reparador. E caiu depois num fundo entorpecimento, bambeando as pálpebras; os olhos em branco, as narinas e os seios ofegantes; os lábios secos e despregados, mostrando a brancura dos dentes. Achava-se muito bem no tépido aconchego daquele corpo de homem; toda ela se penetrava do calor vivificante que vinha dele; toda ela aspirava, até pelos poros, a vida forte daquela vigorosa e boa carnadura, criada ao ar livre e quotidianamente enriquecida pelo trabalho braçal e pelo pródigo sol americano. Aquele calor de carne sã era uma esmola atirada à fome do seu miserável sangue.
E Magdá, sentindo no rosto o resfolegar ardente e acelerado do cavouqueiro, e nas carnes macias da garganta o roçagar das barbas dele, ásperas e maltratadas, gemia e suspirava baixinho como se estivessem a acarinhá-la depois de longa e assanhada pugna de amor.
Quando o moço, já embaixo, a depôs num banco de pedra que ali havia, a enferma abriu de todo os olhos, deixou escapar um grito e cobriu logo o rosto com as mãos. Agora não podia encarar com aquele homem de corpo nu que ali estava defronte dela, a tirar com os punhos o suor que lhe escorria em bagas pela testa.
Chorou de pejo.
O seu pudor e o seu orgulho revoltaram-se, sem que ela soubesse determinar a razão por quê. Uma cólera repentina, um sôfrego desejo de vingança, enchiam-lhe a garganta com um novelo de soluços. O pranto parecia sufocá-la quando rebentou.
- Eu magoei-a, ó patroazinha?... perguntou o trabalhador com humildade, quase sem poder vencer ainda o cansaço. E o imprudente tocou com a mão no ombro de Magdá, procurando, coitado, dar-lhe a perceber o quanto estava consumido por vê-la chorar daquele modo. Ela estremeceu toda e fugiu com o corpo, nem que se houvessem chegado um ferro em brasa; e abraçou-se ao pai, escondendo no peito deste os soluços que agora borbotavam sem intermitência.
(Aluísio Azevedo. O homem. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1970. p. 94-97.)
O homem se caracteriza como um romance naturalista, em que as decisões de caráter moral das personagens resultam de conflitos, porque estão condicionadas simultaneamente a suas condições físicas e psicológicas, ao confronto entre os instintos e a moral. De posse desta informação, demonstre que, no universo da narrativa naturalista, a atitude de Magdá em repudiar o trabalhador que acaba de prestar-lhe um grande auxílio, carregando-a ladeira abaixo, é perfeitamente explicável.