Os tratados com a Bolívia

A Bolívia é uma espécie de Estado de Minas da América do Sul; não tem comunicação com o mar. Quando a Standard Oil abriu lá os poços de petróleo de Santa Cruz de la Sierra, na direção de Corumbá de Mato Grosso, a desvantagem da situação interna da Bolívia tornou-se patente. Estava com petróleo, muito petróleo, mas não tinha porto por onde exportá-lo. Ocorreu então um fato que parece coisa de romance policial.

Os poços de petróleo da Standard trabalhavam sem cessar mas o petróleo que passava pelas portas aduaneiras bolivianas e pagava a taxa estabelecida no contrato de concessão era pouco. O boliviano desconfiou. “Aqueles poços não cessam de jorrar e o petróleo que paga taxa é tão escasso... Neste pau tem mel.”

E tinha. A espionagem boliviana acabou descobrindo o truque: havia um oleoduto secreto que subterraneamente passava por baixo das fronteiras e ia emergir na Argentina. A maior parte do petróleo boliviano escapava à taxação do governo e entrava livre no país vizinho. Um negócio maravilhoso.

Ao descobrir a marosca, a Bolívia fez um barulho infernal e cassou todas as concessões de petróleo dadas à Standard Oil. Vitórias momentâneas sobre a Standard quantas a história não registra! Vitórias momentâneas. Meses depois um coronel ou general encabeça um pronunciamento político, derruba o governo e toma o poder. O primeiro ato do novo governo está claro que foi restaurar as concessões da Standard Oil cassadas pelo governo caído.

Mas como resolver o problema da saída daquele petróleo fechado? De todas as soluções estudadas a melhor consistia no seguinte: forçar o Brasil por meio dum tratado a ser o comprador do petróleo boliviano; esse petróleo iria de Santa Cruz a Corumbá por uma estrada de ferro a construir-se e de Corumbá seguiria pela Estrada de Ferro Noroeste. Isto, provisoriamente. Mais tarde se construiria um oleoduto de La Sierra a Santos, Paranaguá ou outro porto brasileiro do Atlântico. Desse modo o petróleo boliviano abasteceria as necessidades do Brasil e também seria exportado por um porto do Brasil.

Ótima a combinação, mas para que não viesse a falhar era indispensável que o Brasil não tirasse petróleo. Eis o segredo de tudo. A hostilidade oficial contra o petróleo brasileiro vem de grande número de elementos oficiais fazerem parte do grande grupo americano, boliviano e brasileiro que propugna essa solução - maravilhosa para a Bolívia, desastrosíssima para nós.

Os tratados que sobre a matéria o Brasil assinou com a Bolívia não foram comentados pelos jornais dos tempos; era assunto petróleo e a Censura não admitia nenhuma referência a petróleo nos jornais. A 25 de janeiro de 1938 foi assinado o tratado entre o Brasil e a Bolívia no qual se estabelecia o orçamento para a realização de estudos e trabalhos de petróleo no total de 1.500.000 dólares, dos quais o Brasil entrava com a metade, 750 mil dólares, hoje 15 milhões de cruzeiros. O Brasil entrava com esse dinheiro para estudos de petróleo na Bolívia, o mesmo Brasil oficial que levou sete anos para fornecer a Oscar Cordeiro uma sondinha de 500 metros.

Um mês depois, a 25 de fevereiro de 1938, novo tratado entre os dois países, com estipulações para a construção duma estrada de ferro Corumbá a Santa Cruz de la Sierra; a benefício dessas obras em território boliviano o Brasil entrava com um milhão de libras ouro.

O representante do Brasil para a formulação e execução dos dois tratados tem sido o Sr. Fleury da Rocha.

Chega. Não quero nunca mais tocar neste assunto do petróleo. Amargurou-me doze anos de vida, levou-me à cadeia - mas isso não foi o pior. O pior foi a incoercível sensação de repugnância que desde então passei a sentir sempre que leio ou ouço a expressão Governo Brasileiro .

(José Bento Monteiro Lobato. Obras completas — volume 7. São Paulo: Editora Brasiliense, 1951, p.225-227.)

Muitas vezes, nos seus textos, os escritores conseguem comunicar de modo indireto, figurado, conteúdos que, caso referidos pelas palavras correspondentes, poderiam ser considerados chocantes, agressivos. Levando em consideração esse fato, determine o que quer dizer Monteiro Lobato, no último parágrafo de seu texto, ao relacionar as expressões “sensação de repugnância” e “Governo Brasileiro”.