A questão toma por base um trecho do poema satírico Cartas Chilenas, do poeta neoclássico Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), e um fragmento do poema João Boa-Morte, cabra marcado para morrer, do poeta neoconcretista Ferreira Gullar (1930).

Cartas Chilenas

Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha

têm diversas herdades: umas delas

dão trigo, dão centeio e dão cevada;

as outras têm cascatas e pomares,

com outras muitas peças, que só servem,

nos calmosos verões, de algum recreio.

Assim os generais da nossa Chile

têm diversas fazendas: numas passam

as horas de descanso, as outras geram

os milhos, os feijões e os úteis frutos,

que podem sustentar as grandes casas.

(...)

Amigo Doroteu, és pouco esperto;

as fazendas que pinto não são dessas

que têm para as culturas largos campos

e virgens matarias, cujos troncos

levantam, sobre as nuvens, grossos ramos.

Não são, não são fazendas onde paste

o lanudo carneiro e a gorda vaca,

a vaca, que salpica as brandas ervas

com o leite encorpado, que lhe escorre

das lisas tetas, que no chão lhe arrastam.

Não são, enfim, herdades, onde as loiras,

zunidoras abelhas de mil castas,

nos côncavos das árvores já velhas,

que bálsamos destilam, escondidas,

fabriquem rumas de gostosos favos.

Estas quintas são quintas só no nome,

pois são os dois contratos que utilizam

aos chefes, ainda mais que o próprio Estado.

Cada triênio, pois, os nossos chefes

levantam duas quintas ou herdades,

e, quando o lavrador da terra inculta

despende o seu dinheiro, no princípio,

fazendo levantar, de paus robustos,

as casas de vivenda e, junto delas,

em volta de um terreiro, as vis senzalas,

os nossos generais, pelo contrário,

quando estas quintas fazem, logo embolsam

uma grande porção de loiras barras.

(Tomás Antônio Gonzaga, Cartas Chilenas. 1.ª edição: 1788-1789.)

João Boa-Morte

Vou contar para vocês

um caso que sucedeu

na Paraíba do Norte

com um homem que se chamava

Pedro João Boa-Morte,

lavrador de Chapadinha:

talvez tenha morte boa

porque vida ele não tinha.

Sucedeu na Paraíba

mas é uma história banal

em todo aquele Nordeste.

Podia ser em Sergipe,

Pernambuco ou Maranhão,

que todo cabra da peste

ali se chama João Boa-Morte, vida não.

Morava João nas terras

de um coronel muito rico.

Tinha mulher e seis filhos,

um cão que chamava “Chico”,

um facão de cortar mato,

um chapéu e um tico-tico.

Trabalhava noite e dia

nas terras do fazendeiro.

Mal dormia, mal comia,

mal recebia dinheiro;

se recebia não dava

pra acender o candeeiro.

João não sabia como

fugir desse cativeiro.

(Ferreira Gullar, João Boa-Morte, cabra marcado para morrer. 1.ª edição: 1962.)

No fragmento das Cartas Chilenas, a identidade das personagens censuradas pelo eu-poemático é fragmentada em expressões como “os grandes”, “os generais” e “os chefes”. Em João Boa-Morte, embora o enunciador revele ter um nome, sua identidade também se coletiviza e ele perde a individualidade, absorvida pela situação descrita no poema. Com base nessa opção,

  1. a) Explique por que motivo essa personagem deixa de ser individualizada e acaba assumindo uma dimensão tipicamente coletiva;

  2. b) Transcreva os dois versos de João Boa-Morte, em que o eu-poemático reconhece essa coletivização da identidade.