ALEX: Creio que o que a Leila falou e o que nós estávamos discutindo antes sugerem duas conclusões relevantes. A primeira é a de que o bem-estar não é necessariamente função da satisfação de um número maior de desejos ou preferências (para usar o termo caro aos economistas). E a segunda é a de que as pessoas não sabem ao certo o que desejam e, o mais grave, elas podem estar sistematicamente equivocadas acerca do que poderia torná-las mais felizes. Se isso é verdade, então o indivíduo não seria invariavelmente o melhor árbitro daquilo que é melhor para si, e isso mesmo do ponto de vista estreito do seu bem-estar subjetivo. Adam Smith, pelo que o Melo mostrou, não discordaria.
Considere por exemplo, para efeito de raciocínio, duas situações hipotéticas: A e B. Na situação A: Bentinho deseja que Capitu seja fiel, ela é fiel, mas ele acredita que ela não seja. E na situação B: Bentinho deseja que Capitu seja fiel, ela não é, mas ele acredita que ela seja. Em A, o desejo de Bentinho está sendo objetivamente satisfeito, mas ele não é feliz - é o inferno dos tolos. Ao passo que em B o seu desejo não está sendo satisfeito, mas ele é feliz - é o paraíso dos tolos. A percepção nem sempre é o fato; mas isso em nada desabona o fato da percepção. No ardiloso tabuleiro da busca da felicidade, o fato da percepção com frequência vira o jogo. O que é preferível, A ou B?
MELO: Desculpe, Alex, mas não resisto. Vocês conhecem a definição de felicidade dada por Jonathan Swift? Ela é "a posse perpétua da condição de estar bem enganado; o estado pacífico e sereno de ser um tolo entre canalhas".
Pobre Bentinho...
(Eduardo Giannetti, Felicidade.)
Leia os textos extraídos de Dom Casmurro, de Machado de Assis. O capítulo que se segue diz respeito à personagem Ezequiel.
CAPÍTULO 132 - O DEBUXO E O COLORIDO
Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, (...) a mudança fez-se, não à maneira de teatro, fez-se como a manhã que aponta vagarosa, primeiro que se possa ler uma carta, depois lê-se a carta na rua, em casa, no gabinete, sem abrir as janelas; a luz coada pelas persianas basta a distinguir as letras. Li a carta, mal a princípio e não toda, depois fui lendo melhor. Fugia-lhe, é certo, metia o papel no bolso, corria a casa, fechava-me, não abria as vidraças, chegava a fechar os olhos. Quando novamente abria os olhos e a carta, a letra era clara e a notícia claríssima.
Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo para se sentar comigo à mesa, receber-me na escada, beijar-me no gabinete de manhã, ou pedir-me à noite a bênção do costume.
CAPÍTULO 40 - UMA ÉGUA
A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. Creio haver lido em Tácito que as éguas iberas concebiam pelo vento, se não foi nele, foi noutro autor antigo, que entendeu guardar essa crendice nos seus livros. Neste particular, a minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre. (...)
O primeiro texto descreve a angústia de Bentinho, ao perceber a semelhança entre seu filho Ezequiel e o amigo Escobar. Bentinho achava que Escobar o teria traído com Capitu, sua mulher, e que o amigo seria, portanto, o verdadeiro pai da criança. O segundo texto é uma confissão de Bentinho a respeito de sua gigantesca capacidade de imaginar.
a) A comparação entre os dois textos permite concluir se houve ou não traição? Por quê?
b) Em qual dos dois textos, a percepção leva à infelicidade? Por que a percepção conduz a esse estado?