A questão toma por base um fragmento da crônica Conversa de Bastidores, do ficcionista brasileiro Graciliano Ramos (1892-1953), e um trecho da narrativa O Burrinho Pedrês, do ficcionista brasileiro João Guimarães Rosa (1908-1967).
Conversa de Bastidores
[...]
Em fim de 1944, Ildefonso Falcão, aqui de passagem, apresentou-me J. Guimarães Rosa, secretário de embaixada, recém-chegado da Europa.
– O senhor figurou num júri que julgou um livro meu em 1938.
– Como era o seu pseudônimo?
– Viator.
– Ah! O senhor é o médico mineiro que andei procurando.
Ildefonso Falcão ignorava que Rosa fosse médico, mineiro e literato. Fiz camaradagem rápida com o secretário de embaixada.
– Sabe que votei contra o seu livro?
– Sei, respondeu-me sem nenhum ressentimento.
Achando-me diante de uma inteligência livre de mesquinhez, estendi-me sobre os defeitos que guardara na memória. Rosa concordou comigo. Havia suprimido os contos mais fracos. E emendara os restantes, vagaroso, alheio aos futuros leitores e à crítica. [...]
Vejo agora, relendo Sagarana (Editora Universal — Rio — 1946), que o volume de quinhentas páginas emagreceu bastante e muita consistência ganhou em longa e paciente depuração. Eliminaram-se três histórias, capinaram-se diversas coisas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: O Burrinho Pedrês, A Volta do Marido Pródigo, Duelo, Corpo Fechado, sobretudo Hora e Vez de Augusto Matraga, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao romance. Achariam aí campo mais vasto as suas admiráveis qualidades: a vigilância na observação, que o leva a não desprezar minúcias na aparência insignificante, uma honestidade quase mórbida ao reproduzir os fatos. Já em 1938 eu havia atentado nesse rigor, indicara a Prudente de Morais numerosos versos para efeito onomatopaico intercalados na prosa. [...]
A arte de Rosa é terrivelmente difícil. Esse antimodernista repele o improviso. Com imenso esforço escolhe palavras simples e nos dá impressão de vida numa nesga de caatinga, num gesto de caboclo, uma conversa cheia de provérbios matutos. O seu diálogo é rebuscadamente natural: desdenha o recurso ingênuo de cortar ss, ll e rr finais, deturpar flexões, e aproximar-se, tanto quanto possível, da língua do interior.
Devo acrescentar que Rosa é um animalista notável: fervilham bichos no livro, não convenções de apólogo, mas irracionais, direitos exibidos com peladuras, esparavões e os necessários movimentos de orelha e de rabos. Talvez o hábito de examinar essas criaturas haja aconselhado o meu amigo a trabalhar com lentidão bovina.
Certamente ele fará um romance, romance que não lerei, pois, se for começado agora, estará pronto em 1956, quando os meus ossos começarem a esfarelar-se.
(Graciliano Ramos, Conversa de bastidores. In: Linhas tortas)
O Burrinho Pedrês
[...]
Nenhum perigo, por ora, com os dois lados da estrada tapados pelas cercas. Mas o gado gordo, na marcha contraída, se desordena em turbulências. Ainda não abaixaram as cabeças, e o trote é duro, sob vez de aguilhoadas e gritos.
– Mais depressa, é para esmoer?! — ralha o Major. — Boiada boa!...
Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combucos, cubetos, lobunos, lompardos, caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borralhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros. E os tocos da testa do mocho macheado, e as armas antigas do boi cornalão.
– P’ra trás, boi-vaca!
– Repele Juca... Viu a brabeza dos olhos? Vai com sangue no cangote...
– Só ruindade e mais ruindade, de em-desde o redemunho da testa até na volta da pá! Este eu não vou perder de olho, que ele é boi espirrador.
Apuram o passo, por entre campinas ricas, onde pastam ou ruminam outros mil e mais bois. Mas os vaqueiros não esmorecem nos eias e cantigas, porque a boiada ainda tem passagens inquietantes: alarga-se e recomprime-se, sem motivo, e mesmo dentro da multidão movediça há giros estranhos, que não os deslocamentos normais do gado em marcha — quando sempre alguns disputam a colocação na vanguarda, outros procuram o centro, e muitos se deixam levar, empurrados, sobrenadando quase, com os mais fracos rolando para os lados e os mais pesados tardando para trás, no coice da procissão.
– Eh, boi lá!... Eh-ê-ê-eh, boi!... Tou! Tou! Tou...
As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...
“Um boi preto, um boi pintado,
cada um tem sua cor.
Cada coração um jeito
de mostrar o seu amor.”
Boi bem bravo, bate baixo, bota baba, boi berrando... Dança doido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai, vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando.
“Todo passarinh’ do mato
tem seu pio diferente.
Cantiga de amor doído
não carece ter rompante...”.
Pouco a pouco, porém, os rostos se desempanam e os homens tomam gesto de repouso nas selas, satisfeitos. Que de trinta, trezentos ou três mil, só está quase pronta a boiada quando as alimárias se aglutinam em bicho inteiro — centopeia —, mesmo prestes assim para surpresas más.
(João Guimarães Rosa, b. In: Sagarana)
Muitas palavras podem atuar nas frases como representantes de diferentes classes e exercer, portanto, diferentes funções sintáticas. Tendo em mente esta informação,
a) Determine, com base em características formais da frase em que se encontra, a classe de palavras em que se enquadra a palavra “eias”, empregada por Guimarães Rosa no sétimo parágrafo do trecho citado;
b) Considerando que, no quarto período do antepenúltimo parágrafo de seu texto, Graciliano Ramos representou três palavras visualmente por meio das letras dobradas rr, ll e ss, reescreva esse período, substituindo tais letras dobradas pelas palavras correspondentes.