Tome por base uma passagem do romance Eurico, o Presbítero, do romântico português Alexandre Herculano (1810-1877), e a uma passagem do romance O Missionário, do escritor naturalista brasileiro Inglês de Sousa (1853-1918).

Eurico, o Presbítero

Os raios derradeiros do sol desapareceram: o clarão avermelhado da tarde vai quase vencido pelo grande vulto da noite, que se alevanta do lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e luminosa surge a meus olhos, ó Hermengarda, semelhante à aparição do anjo da esperança nas trevas do condenado.

E essa imagem é pura e sorri; orna lhe a fronte a coroa das virgens; sobe-lhe ao rosto a vermelhidão do pudor; o amículo alvíssimo da inocência, flutuando-lhe em volta dos membros, esconde lhe as formas divinas, fazendo-as, porventura, suspeitar menos belas que a realidade.

E assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade: mas, em sonhos ou desenhada no vapor do crepúsculo, tu não és para mim mais do que uma imagem celestial; uma recordação indecifrável; um consolo e ao mesmo tempo um martírio.

Não eras tu emanação e reflexo do céu? Por que não ousaste, pois, volver os olhos para o fundo abismo do meu amor? Verias que esse amor do poeta é maior que o de nenhum homem; porque é imenso, como o ideal, que ele compreende; eterno, como o seu nome, que nunca perece.

Hermengarda, Hermengarda, eu amava-te muito! Adorava-te só no santuário do meu coração, enquanto precisava de ajoelhar ante os altares para orar ao Senhor Qual era o melhor dos dois templos?

Foi depois que o teu desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.

Por que vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a Cruz ensanguentada do Calvário; quando a mão inexorável do sacerdócio soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da igreja; quando o primeiro passo além do limiar desta será a perdição eterna?

Mas, ai de mim! essa imagem que parece sorrir-me nas solidões do espaço está estampada unicamente na minha alma e reflete-se no céu do oriente através destes olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes queimou as lágrimas.

(HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. Edição crítica, dirigida e prefaciada por Vitorino Nemésio. 41ª ed. Lisboa: Livraria Bertrand, [s.d.], p. 42-43.)

O Missionário

Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular e conter a ação determinante da hereditariedade psicofisiológica sobre o cérebro do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera? No momento dado, impotente o freio moral para conter a rebelião dos apetites, o instinto mais forte, o menos nobre, assenhoreara-se daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de S. Sulpício. Em outras circunstâncias, colocado em meio diverso, talvez que padre Antônio de Morais viesse a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral, sem educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de costumes, sem a coação da opinião pública, sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente constituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir.

Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas ardentes sensualidades dum amor físico, porque a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos, tentação demoníaca, das suas formas esculturais, assombro dos sertões de Guaranatuba.

(SOUSA, Inglês de. O missionário. São Paulo: ática, 1987, p. 198.)

A leitura dos dois textos detecta a presença de certos recursos estilísticos, como por exemplo o da anáfora, que consiste na repetição de um mesmo vocábulo ou locução no início de duas ou mais orações ou frases seguidas. Releia ambos os textos e, a seguir,

  1. a) Apresente um exemplo, extraído de qualquer dos dois textos, em que se revele o recurso da anáfora;

  2. b) Aponte o efeito expressivo mais relevante, patente nesse exemplo, do emprego da anáfora.