[1] 13 de maio
Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande [4] prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. [7] Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da [10] cidade, e fazer ovação à regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram [13] melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me [16] depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, [19] provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos. Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. [22] Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da História, ou até da
[25] Poesia. (...)
14 de maio, meia-noite
Não há alegria pública que valha uma boa alegria [28] particular. Saí agora do Flamengo, fazendo esta reflexão, e vim escrevê-la, e mais o que lhe deu origem. Era a primeira reunião dos Aguiar; havia alguma gente [31] e bastante animação. (...) A alegria dos donos da casa era viva, a tal ponto que não a atribuí somente ao fato dos amigos juntos, mas também ao grande acontecimento do dia. Assim o disse [34] por esta única palavra, que me pareceu expressiva, dita a brasileiros: — Felicito-os. — Já sabia? — perguntaram ambos. [37] Não entendi, não achei que responder. Que era que eu podia saber já, para os felicitar, se não era o fato público? Chamei o melhor dos meus sorrisos de acordo e complacência, [40] ele veio, espraiou-se, e esperei. Velho e velha disseram-me então rapidamente, dividindo as frases, que a carta viera dar-lhes grande prazer. (...) [43] Eis aí como, no meio do prazer geral, pode aparecer um particular, e dominá-lo. Não me enfadei com isso; ao contrário, achei-lhes razão, e gostei de os ver sinceros. Por fim, [46] estimei que a carta do filho postiço viesse após anos de silêncio pagar-lhes a tristeza que cá deixou. Era devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem.
Machado de Assis Memorial de Aires Internet:
A respeito do fragmento de texto apresentado, que compõe o romance Memorial de Aires, de Machado de Assis, e considerando os aspectos que ele suscita, julgue o item seguinte.
Apesar de a alegria demonstrada pelo casal Aguiar não ter sido provocada pela abolição da escravatura, mas pelo recebimento de uma carta, o narrador sugere a existência de algo comum entre esses dois eventos.