Páginas sem glória
[1] A história maior, incluindo a esportiva, não precisa de mais testemunhos, pois aí estão, documentando-a, para além do boca a boca entre gerações, os arquivos todos, os livros e as [4] revistas ilustradas, os filmes e depois os vídeos, os jornais microfilmados nas bibliotecas públicas, os DVDs e a Internet. Mas a história dita menor, quem a documentará? Quanta coisa [7] digna de registro não se carrega para o túmulo: imagens e sensações inesquecíveis, conhecimentos adquiridos depois de longa observação e aprendizado, grandes ideias, sentimentos [10] fundos que nunca foram passados para o papel? No futebol, quantas jogadas espetaculares ou de fina técnica, executadas em treinos, partidas preliminares ou até na várzea, para uma [13] plateia ínfima, embora muitas vezes seleta naquele campo específico do saber? (...) [16] Quanto a meu irmão e eu, estávamos em uma idade em que (...) a mente, não estando entupida com o entulho da vida adulta, arquiva o verdadeiramente memorável no detalhe [19] e no conjunto, ainda que o tempo tenha vindo a transformá-lo em uma substância mítica e estilizada, jogadas feitas agora de palavras, mas que me permitem apresentar aos aficionados [22] alguns poucos desses lances, sem muita preocupação com a cronologia, apenas para que se possa ter noção da coisa.
Sérgio Sant’Anna. Páginas sem glória. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 107-8 (com adaptações).
Considerando o fragmento da novela Páginas sem glória, do escritor brasileiro Sérgio Sant’Anna, julgue o item seguinte.
Ao propor que seu relato dos jogos de futebol será feito “sem muita preocupação com a cronologia” (l. 22 e 23), o narrador sugere que a representação literária da memória segue um tempo particular, relacionado à transformação dos fatos rememorados “em uma substância mítica” (l.20).