Bons dias!

[1] Eu pertenço a uma família de profetas après coup,
post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo, e juro se necessário for, que [4] toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, [7] mais ou menos. Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar. (...)
[10] No golpe do meio (coup du milieu, mas eu prefiro falar a minha língua), levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as ideias pregadas por Cristo, há [13] dezoito séculos, restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia que a nação inteira devia acompanhar as mesmas ideias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era [16] um dom de Deus, que os homens não podiam roubar sem pecado. Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. [19] (...) No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza: [22] — Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida, e tens mais um ordenado, um ordenado que... [25] — Oh! Meu senhô! Fico. — ...Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando [28] nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos... — Artura não qué dizê nada, não, senhô... [31] — Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha. [34] — Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete. Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que [37] lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil [40] adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos. Boas noites.
Machado de Assis. Obra completa. Vol. III. 3.ª ed. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973, p. 489-91.

Tendo como referência o fragmento acima, da crônica Bons dias!, de Machado de Assis, julgue o item.

A interação entre o narrador e Pancrácio demonstra como a prosa realista no Brasil manteve o sentimentalismo do folhetim romântico, marcado pela narração de feitos heroicos e pelo apelo moral dos gestos do herói.