[1] E as histórias corriam como os fatos mais reais deste

mundo. Agora era o encontro do padre Ramalho com

o lobisomem na mata. O padre ia para dar a extrema-unção a

[4] um doente nos Caldeiros, quando viu uma coisa puxando pelo

rabo do cavalo. Deu de rebenque, meteu as esporas, e nada.

O cavalo parecia estar com os pés enterrados no chão. Olhou

[7] para trás, viu o bicho já querendo partir para cima dele. Tirou

do bolso a caixinha com a hóstia consagrada, e apontou. Ouviu

o baque de um corpo todo, e um gemido comprido de

[10] moribundo. O cavalo tomou as rédeas, disparando. No outro

dia, encontraram José Cutia desfalecido na estrada.

E o lobisomem bebia sangue também dos animais,

[13]chupava os cavalos no pescoço. O poldro coringa do meu avô

amanheceu um dia com um talho minando sangue.

O lobisomem andara de noite pelas estrebarias.

[16] Eu acreditava em tudo isto, e muitas vezes fui dormir

com o susto destes bichos infernais. Na minha sensibilidade, ia

crescendo este terror pelo desconhecido, pelas matas escuras,

[19] pelos homens amarelos que comiam fígado de menino. E até

grande, rapaz de colégio, quando passava pelos sombrios

recantos dos lobisomens, era assoviando ou cantando alto para

[22] afugentar o medo que ia por mim. Os zumbis também existiam

no engenho. Os bois que morriam não se enterravam.

Arrastava-se para o cemitério dos animais, à beira do rio,

[25] debaixo dos marizeiros, onde eles ficavam para o repasto dos

urubus. De longe sentia-se o hálito podre da carniça, e a gente

via os comensais disputando os pedaços de carne e as tripas do

[28] defunto. O zumbi, que era a alma dos animais, ficava por ali

rondando. Não tinha o poder maligno dos lobisomens. Não

bebia sangue nem dava surras como as caiporas. Encarnava-se

[31] em porcos e bois, que corriam pela frente da gente. E quando

se procurava pegá-los, desapareciam por encanto.

Eles me contavam estas histórias dando detalhe por

[34] detalhe, que ninguém podia suspeitar da mentira. E a verdade

é que para mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem

existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu

[37] acreditava nele com mais convicção do que acreditava em

Deus. Ele ficava tão perto da gente, ali na Mata do Rolo, com

as suas unhas de espetos e os seus pés de cabra! (...) Pintavam

[40] o lobisomem com uma realidade tão da terra que era o mesmo

que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma ideia vaga de sua

pessoa. Um homem bom, com um céu para os justos e um

[43] inferno para a gente ruim como a velha Sinhazinha, com

caldeiras e espetos quentes. Mas tudo isso depois que o sujeito

morresse. O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva.

[46] Era sair antes da meia-noite para a Mata do Rolo, e encontrá-lo.

José Lins do Rêgo. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p. 76-7.

Considerando o fragmento acima, da obra Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo, e aspectos por ele suscitados, julgue o item.

No contexto em que foi empregado, o segmento “Os bois que morriam” (l.23) corresponde a um subconjunto de bois do conjunto de bois do ambiente descrito e, portanto, nele, não se incluem os bois mortos no abate.