[1] Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme. O modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. [4] Fora para o lado do mar que aquele homem pretendera ir, antes mesmo de ter encontrado por feliz acaso o hotel. Mas — sem mapa, conhecimento ou bússola — embrenhara-se terra [7] adentro. “Hoje deve ser domingo” — chegou mesmo a pensar com certa glória, e domingo seria o grande coroamento de sua [10] isenção. Tratava-se de seu primeiro pensamento claro, desde que deixara o hotel. Na verdade, desde que fugira, era o primeiro pensamento que não tinha mera utilidade de defesa. De início, [13] aliás, Martim até não soube o que fazer com ele. Apenas agitou-se à novidade, e coçou-se voraz sem parar de andar. Foi mais além que estacou diante do primeiro [16] passarinho. O passarinho negro estava pousado num ramo baixo, à altura de seus olhos; com mão pesada e potente, o homem pegou-o sem machucá-lo, com a bondade física que tem uma [19] mão pesada. Com o leve peso a carregar, o homem continuou sua marcha entre pedras. [22] — Não sei mais falar, disse, então, para o passarinho, evitando olhá-lo... Só depois pareceu entender o que dissera, e então olhou [25] face a face o sol. “Perdi a linguagem dos outros”, repetiu, então, bem devagar, como se as palavras fossem mais obscuras do que eram, e de algum modo muito lisonjeiras. [28] Alguma coisa estava lhe acontecendo. E era alguma coisa com um significado, embora não houvesse um sinônimo para essa coisa que estava acontecendo. E não havia sinônimo [31] para nenhuma coisa... Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não tinha sequer começo de linguagem própria. E, no entanto, oco, [34] mudo, rejubilava-se. Assim, ao remexer agora com fascínio ainda cauteloso na linguagem morta, ele tentou, por pura experiência, dar o título antigamente tão familiar de “crime” a [37] essa coisa tão sem nome que lhe sucedera.
Clarice Lispector. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 (com adaptações).
Com base no texto acima e nos aspectos por ele suscitados, julgue o seguinte item.
Em “De início, aliás, Martim até não soube o que fazer com ele” (l.12-13), seriam mantidas a correção gramatical e a interpretação, caso a expressão de retificação, “aliás”, fosse intercalada entre “fazer” e “com ele”.