O emplasto

[1] Um dia de manhã, estando a passear na chácara,

pendurou-se-me uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro.

Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a

[4] fazer as mais arrojadas cambalhotas. Eu deixei-me estar a

contemplá-la. Súbito, deu um grande salto, estendeu os braços

e as pernas, até tomar a forma de um X: decifra-me ou devoro-te.

[7] Essa ideia era nada menos que a invenção de um

medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco,

destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.

[10] Na petição de privilégio que então redigi, chamei a

atenção do governo para esse resultado, verdadeiramente

cristão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens

[13] pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto

de tamanhos e tão profundos efeitos. Agora, porém, que estou

cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me

[16] influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais,

mostradores, folhetos, esquinas e, enfim, nas caixinhas do

remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas. Para que

[19] negá-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de

lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio,

porém, que esse talento me hão de reconhecer os hábeis.

[22] Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma

virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia

e lucro; de outro, sede de nomeada. Digamos: — amor da glória.

[25] Um tio meu, cônego de prebenda inteira, costumava

dizer que o amor da glória temporal era a perdição das almas,

que só devem cobiçar a glória eterna. Ao que retorquia outro

[28] tio, oficial de um dos antigos terços de infantaria, que o amor

da glória era a coisa mais verdadeiramente humana que há no

homem e, consequentemente, a sua mais genuína feição.

[31] Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao

emplasto.

Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. Obra completa, v. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992, p. 514-5 (com adaptações).

Com relação ao texto acima, à obra Memórias Póstumas de Brás Cubas e a aspectos por eles suscitados, julgue o item.

No texto, o vocábulo “sede” (l.24) significa ânsia, desejo e distingue-se de sede, local onde funciona a representação principal de firma ou empresa. No que se refere a esses dois vocábulos, o acento tônico é o recurso da língua com capacidade de discriminar os significados distintos.