[1] Entramos no quarto. Encurvada em semicírculo

sobre o leito, outra criatura que não a minha avó, uma

espécie de animal que se tivesse disfarçado com os seus

[4] cabelos e deitado sob os seus lençóis, arquejava, gemia,

sacudia as cobertas com as suas convulsões. As pálpebras

estavam fechadas, e era porque fechavam mal, antes que

[7] porque se abrissem, que deixavam ver um canto da pupila,

velado, remeloso, refletindo a obscuridade de uma visão

orgânica e de um sofrimento interno.

[10] Quando meus lábios a tocaram, as mãos de minha

avó agitaram-se, ela foi percorrida inteira por um longo

frêmito, ou reflexo, ou porque certas afeições possuam a sua

[13] hiperestesia, que reconhece, através do véu da inconsciência,

aquilo que elas quase não têm necessidade dos sentidos para

querer. Súbito, minha avó ergueu-se a meio, fez um esforço

[16] violento, como alguém que defende a própria vida. Françoise

não pôde resistir, ao vê-lo, e rompeu em soluços.

Lembrando-me do que o médico havia dito, quis fazê-la sair

[19] do quarto. Nesse momento, minha avó abriu os olhos.

Precipitei-me sobre Françoise para lhe ocultar o pranto,

enquanto meus pais falassem à enferma. O ruído do oxigênio

[22] calara-se, o médico afastou-se do leito. Minha avó estava

morta.

A vida, retirando-se, acabava de carregar as

[25] desilusões da vida. Um sorriso parecia pousado nos lábios de

minha avó. Sobre aquele leito fúnebre, a morte, como o

escultor da Idade Média, tinha-a deitado sob a aparência de

[28] menina e moça.

Marcel Proust. Em busca do tempo perdido: o caminho de Guermantes. vol. 3, 3. a ed. rev. Trad. Mario Quintana. São Paulo: Globo, 2006, p. 376-7 (com adaptações).

Com base no fragmento de texto acima, de Marcel Proust, julgue o item.

Depreende-se do texto que a realidade é percebida — e assim construída — por meio de sensações aliadas a pensamentos fugidios, instantâneos, que, no entanto, se revelam como elementos integrantes de um todo.