[...]
[1] — O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
[4] que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
[7] como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
[10] do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
[13] por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
[16] senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
[19] Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
[22] limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
[25] com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
[28] já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
[31] Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
[34] que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
[37] e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
[40] iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
[43] que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
[46] de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
[49] ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
[52] iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
[55] a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
[58] algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
[61] e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
[64] que em vossa presença emigra.
João Cabral de Melo Neto. Morte e vida severina. Rio de Janeiro: Sabiá, 1967 (com adaptações).
Considerando o poema Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, o fragmento desse poema transcrito ao lado e as características da obra desse autor, julgue o item a seguir.
A visão materialista dos fatos sociais e de seus fatores externos, em especial os traços biológicos, aparece representada, em Morte e vida severina, na caracterização do retirante, como se observa nos versos de 36 a 38.