As feridas abertas da escravidão

Mais de um século após abolir a escravatura, Brasil e EUA apenas agora começam a reconstruir a história de seus heróis negros.

Doze anos de escravidão, produção do diretor britânico Steve McQueen, entrou para a história do cinema ao ganhar o Oscar de Melhor Filme, na premiação do último dia 2 [de março de 2014]. É o primeiro filme de um diretor negro a ganhar a estatueta. (...)

Antes do filme, lançado no ano passado, quase ninguém conhecia a história de Salomon Northup, negro livre e bem-educado de Nova York. Em 1842, ele foi sequestrado e forçado à escravidão, por 12 anos, em fazendas no sul dos Estados Unidos. (05)Resgatado por seus amigos brancos, Northup lutou pela abolição da escravatura e contou sua história a um escritor de livros, David Wilson(06). O texto foi encontrado e reeditado em 1960, sem grande repercussão, até chegar às mãos de McQueen. (01)“Minha ideia era transformar Northup num herói, porque ele é um verdadeiro herói americano”(02), disse o cineasta.

A consagração do filme, ao mesmo tempo, serviu para realçar como a escravidão de negros, abolida nos Estados Unidos há 148 anos e no Brasil há 125, ainda é pouco conhecida. No Brasil, por mais de um século, prevaleceu a crença de que seria improdutivo vasculhar o passado dos negros. Os arquivos sobre a escravidão, dizia-se, perderam-se em 1890. (...)

“A carência e a imprecisão de registros históricos reduziu o brilho de heróis nacionais”, diz Patrícia Xavier, mestre em história social pela PUC-SP. Em sua tese de mestrado, Patrícia estudou a vida de Francisco José do Nascimento, O Chico da Matilde, líder abolicionista morto em 6 de março de 1914 — portanto, há 100 anos. Sua vida também daria um filme. Negro livre, Chico trabalhava como prático no porto da província do Ceará. Segundo relatos da época, em 1881, Chico liderou os jangadeiros ao se recusar transportar escravos. Influenciado pela insurreição dos jangadeiros, o Ceará aboliu a escravidão em 1884, quatro anos antes da Princesa Isabel assinar a Lei Áurea. (...)

O resgate histórico do período de escravidão ganha força à medida que documentos são descobertos e que a sociedade ganha distanciamento. Um século e meio de abolição é pouco tempo, mesmo para países jovens como EUA e Brasil. O diretor Steve McQueen pôde usar, em seu filme, fazendas do Mississippi onde houve a escravidão. O tronco onde dois escravos são espancados, na obra de ficção, foi usado para o chicoteamento, um século atrás. “Aquelas árvores viram tudo”, diz McQueen. Método de trabalho largamente empregado na Europa, na Ásia e na África, a escravidão foi extinta apenas na década de 1980 em países como Serra Leoa.

(03)Suas feridas continuam abertas(04).

Época/nº823, 10 mar. 2014. Editora Globo, p.55.

Na afirmação “Aquelas árvores viram tudo”, de MC Queen, percebe-se