Do fundo do baú
Eu tenho uma amiga que, todos os anos, me enviava um belo cartão de Natal, às vezes desenhado por ela. Este ano, em vez de cartão, chegou uma gentil mensagem eletrônica (12). Eu entendo, ficou mais fácil. E dessa maneira, você manda para quantas pessoas quiser (13). Mas não há comparação entre um cartão (que você custa a jogar fora) e uma mensagem eletrônica. Isso ainda é mais verdade para essa maravilhosa forma de comunicação que é a carta (08). É difícil imaginar o que a carta representa na história da humanidade. Primeiro, como laço afetivo. Certo, pode-se pôr sentimento numa mensagem eletrônica (09). Mas ela tem um caráter menos pessoal que uma carta. Recebendo a carta, você sabia que era só para você (02). Que uma determinada pessoa, num cantinho do universo, sentou-se numa mesa, escolheu o papel, uma caneta, e começou a escrever para você. A emoção podia começar na caixa do correio — pelo formato do envelope, pela letra que você conhecia.
Isso pelo lado afetivo (11). Havia outro, enorme: a carta como documento histórico, ou literário, ou sociológico. Aqui no Brasil, começou com a carta de Pero Vaz, o primeiro documento da nacionalidade (07). Pouquíssimo tempo depois, as cartas do padre Manoel da Nóbrega prestam informações preciosas sobre um país recém-nascido.
Não há nenhuma certeza de que as pessoas vão guardar e-mails. É uma coisa mais precária e a própria pressa da vida moderna conspira contra isso. Assim, talvez deixem de se repetir coisas como (06):
1. As cartas de São Paulo, básicas para a história do cristianismo.
2. Dois conjuntos de cartas romanas: as de Cícero e as de Sêneca, que, sozinhas, garantiam um conhecimento quase íntimo de uma época grandiosa. As de Cícero, mais pictóricas, tecidas com as histórias do dia a dia. As de Sêneca, o retrato de um filósofo que foi o Montaigne dos romanos.
3. As cartas de Fénelon. Esse grande bispo francês foi um incomparável diretor de consciências na França de Luís XlV. Sua correspondência é uma combinação única de beleza literária e finura espiritual.
4. As cartas de Flaubert, talvez sua obra-prima (tenho uma preciosa edição francesa em sete volumes). O caso de Flaubert é um bom exemplo. Como ele vivia isolado, totalmente dedicado aos seus (poucos) romances, a carta era o seu meio de comunicação com o mundo. Sendo ele o escritor que era, surgiram maravilhas literárias (01). Mas o tom é absolutamente íntimo. Não vai muito bem com a eletrônica.
5. A correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco. Este é um tesouro bem nosso. Nabuco era dez anos mais moço que Machado, e foi seu parceiro na formação e consolidação da Academia Brasileira de Letras. Para além do puramente literário, o que essas cartas revelam é o encontro, o diálogo (03), entre dois espíritos superiores. Tem o sabor de um velho vinho do Porto (05).
A lista poderia ir longe. Na literatura romântica, por exemplo, as cartas de amor entre Elizabeth Barret Browing e seu futuro marido Robert Browing, todos dois grandes poetas. No século XX, as cartas que tanto enriquecem a estante kafkiana. Sem serem famosas, as cartas de Thomas Mann são um dos melhores meios de aprofundar o conhecimento desse grande romancista alemão (04).
Isto não é para ser um exercício de saudosismo (10). Cada época tem suas coisas boas — ou más. Normalmente, nesses casos, ganha-se por um lado e perde-se pelo outro. O ideal é quando se pode conservar tudo — ou quase tudo. (...)
HORTA, Luiz Paulo. O Globo. 28 dez. 2012.
Os verbos abaixo destacados são, muitas vezes, utilizados de forma coloquial, infringindo assim a norma culta da língua portuguesa. Pode-se afirmar que, levando em conta o contexto, esse fato ocorreu em
I) Uma pessoa, num cantinho do universo, sentou-se numa mesa, escolheu o papel, uma caneta, e começou a escrever para você.
II) Não há comparação entre um cartão que você custa a jogar fora e uma mensagem eletrônica.
III) Na literatura romântica, por exemplo, tem as cartas de amor entre Elizabeth Barret Browing e seu futuro marido Robert Browing.