TEXTO II
RETRATO DE VELHO
Tem horror a criança. Solenemente, faz queixa do bisneto, que lhe sumiu com a palha de cigarro, para vingar-se de seus ralhos intempestivos. Menino é bicho ruim, comenta. Ao chegar a avô, era terno e até meloso, mas a idade o torna coriáceo.
No trocar de roupa, atira ao chão as peças usadas. Alguém as recolhe à cesta, para lavar. Ele suspeita que pretendem subtraí-las, vai à cesta, vasculha, retira o que é seu, lava-o, passa-o. Mal, naturalmente.
- Da próxima vez que ele vier, diz a nora, terei de fechar o registro, para evitar que ele desperdice água.
Espanta-se com os direitos concedidos às empregadas. Onde se viu? Isso aqui é o paraíso das criadas. A patroa acorda cedo, para despertar a cozinheira. Ele se levanta mais cedo ainda, e vai acordar a dona da casa:
- Acorda, sua mandriona, o dia já clareou!
As empregadas reagem contra a tirania, despedem-se. E sem empregadas, sua presença ainda é mais terrível.
As netas adolescentes recebem amigos. Um deles, o pintor, foi acometido de mal súbito e teve de deitar-se na cama de uma das garotas. Indignação: Que pouca-vergonha é essa? Esse bandalho aí conspurcando o leito de uma virgem? Ou quem sabe se nem é mais virgem?
- Vovô, o senhor é um monstro!
E é um custo impedir que ele escaramuce o doente para fora de casa.
- A senhora deixa suas filhas irem ao baile sozinhas com rapazes? Diga, a senhora deixa?
- Não vão sozinhas, vão com os rapazes.
- Pior ainda! Muito pior! A obrigação dos pais é acompanhar as filhas a tudo quanto é festa.
- Papai, a gente nem pode entrar lá com as meninas. É coisa de brotos.
- É, não é? Pois me dá depressa o chapéu para eu ir lá dizer poucas e boas!
Não se sabe o que fazer dele. Que fim se pode dar a velhos implicantes? O jeito é guardá-lo por três meses e deixá- lo ir para outra casa, brigado. Mais três meses, e nova mudança nas mesmas condições. O velho é duro:
- Vocês me deixam esbodegado, vocês são insuportáveis! - queixa-se ao sair. Mas volta.
- Descobri que paciência é uma forma de amor - diz-me uma das filhas, sorrindo.
(Carlos Drummond de Andrade)
Na 4ª linha do texto II, a palavra coriáceo pode ser substituída, sem prejuízo de significado, por