Conversando com os mortos
Neste exato instante em que seus olhos passam por estas linhas, está ocorrendo um pequeno milagre da tecnologia. Não, não estou falando do computador nem da transmissão de dados pela internet, mas da boa e velha leitura, inventada pela primeira vez cerca de 5.500 anos atrás. Para nós, leitores experimentados, ela parece a coisa mais natural do mundo, mas isso (1) não passa de uma ilusão. Ler não apenas não é natural como ainda envolve cooptar uma complexa rede de processos neurológicos que surgiram para outras finalidades.
Acho que dá até para argumentar que a escrita é a mais fundamental criação da humanidade. Ela nos permitiu ampliar nossa memória para horizontes antes inimagináveis. Não fosse por ela, jamais teríamos atingido os níveis de acúmulo, transmissão e integração de conhecimento que logramos obter. Nosso modo de vida provavelmente não diferiria muito daquele experimentado por nossos ancestrais do Neolítico.
A conclusão é que, de alguma forma, conseguimos adaptar nosso cérebro de primatas para lidar com a escrita. Para Stanislas Dehaene (matemático e neurocientista francês), operou aqui (2) o fenômeno da reciclagem neuronal, pelo qual processos que surgiram para outras funções foram recrutados para a leitura. A coisa (3) funcionou tão bem que nos tornamos capazes de ler com proficiência e rapidez, obtendo a façanha de absorver a linguagem através da visão, algo (4) para o que nosso corpo e mente não foram desenhados.
Antes de continuar, é preciso qualificar um pouco melhor esse "funcionou tão bem". É claro que funcionou, tanto que me comunico agora com você, leitor, através desse código especial. Mas, se você puxar pela memória, vai se lembrar de que teve de aprender a ler, um processo que, na maioria esmagadora dos casos, exigiu instrução formal e vários anos de treinamento até atingir a presente eficiência.
Enquanto a aquisição da linguagem oral ocorre, esta sim, naturalmente e sem esforço (basta jogar uma criança pequena numa comunidade linguística qualquer que ela "ganha" o idioma), a escrita/leitura precisa ser ensinada e praticada.
As dificuldades não são poucas. Começam nos olhos (só conseguimos ler o que é captado pela fóvea) e se estendem por todo o tecido neuronal. Um problema particularmente interessante é o da invariância. Como o cérebro faz para concluir que A, a, a, a, a são a mesma letra, apesar dos diferentes desenhos? pior, mesmo quAnDo fazemos uma sopa de fontes e mIsturAmos TuDo, continuamos DECIFRANDO A MENSAGEM COM POUCA PERDA DE VELOCIDADE.
(Adaptado de SCHWARTSMAN, Hélio. Conversando com os mortos. Folha de S. Paulo. 14 jun. 2012.)
Sobre quem gosta de ler
Quando você vê alguém lendo um livro, presencia uma pessoa às voltas com uma grande exigência. A palavra escrita o põe na parede: pede a ele uma interação e manda às favas a passividade. A leitura fricciona a percepção; é a fricção de duas pedras - fiat lux!
Não, quem lê não está imóvel, é puro dinamismo e motor. É como uma barriga grávida, num aceleradíssimo tempo de prenhez.
A leitura enfia-se no presente, fábrica o que virá. Quem lê é um da Vinci, diagramando os recursos recebidos, aplicando cor. E fazendo.
A importância primeira do ato de ler é essa negação da passividade, essa incondicional exigência de ação. É um ato de otimismo intrínseco.
(Tom Zé (músico). In: Almanaque Brasil. www.almanaquebrasil.com.br/curiosidades-literatura/7171. Acesso em 11 jul. 2012.)
Os textos de Hélio Schwartsman e Tom Zé têm um tema em comum: a leitura. Sobre a abordagem desse tema pelos dois autores, é correto afirmar: