Sem culpa e sem vergonha

No passado, a corrupção da política brasileira costumava andar de mãos dadas com a inflação. O resultado dessa combinação era a crise institucional. Hoje, morto o dragão inflacionário e com o sistema aberto a uma maior competitividade, a corrupção que, entre outras coisas, bloqueia a eficiência dos serviços públicos, surge em estado puro e remete a questões fundamentais. De onde vem, afinal, essa roubalheira institucionalizada que, como revela o governo Lula, independe de coloração ideológica e partido político? Seria ela o resultado das nossas origens como uma colônia semiabandonada, povoada por degredados e gente capaz de tudo para subir na vida? Estaria ligada a um mero banditismo, pronto a ser sanado por uma política eficiente? Ou teria uma ligação profunda com um desenho institucional marcado pela proteção aos superiores, a ponto de lhes garantir impunidade quando praticam a corrupção político-partidário-administrativa?

No centro da corrupção à brasileira existe uma indecisão cultural (ou moral se quiserem) entre duas éticas que operam em qualquer sistema social. A primeira é a ética particularista da casa, dos amigos e da família, que manda proteger, ignorar, relevar, condescender e perdoar o ofensor (corrente em sociedades tribais e arcaicas); a outra é a ética universalista da rua (ou do mundo público), que demanda, ao contrário, tratar com isenção ou igualdade, aquilatar a gravidade da ofensa, trazer a público o ofensor e punir adequadamente quem quer que tenha cometido o delito. Nosso problema, como a dinâmica da vida pública não cansa de mostrar, é que até hoje temos consciência dessa duplicidade, mas ignoramos solenemente suas implicações. Assim, quando se trata dos outros, somos implacáveis e a eles aplicamos sem hesitar as normas universais do mundo da rua. Maximizamos a dimensão impessoal da ofensa e tratamos a pessoa como um indivíduo: um mero cidadão também sujeito à lei. Mas, quando são os nossos, eles são vítimas da imprensa, meros aloprados, ou crianças. Como sequer julgar o presidente do Congresso Nacional, se ele é nosso colega, amigo e nos favoreceu em inúmeras situações?

Tenho para mim que o intolerável e verdadeiramente enlouquecedor no Brasil atual não é o jogo de forças entre pessoas e leis, rotineiro em qualquer sistema, mas a manutenção daquelas duas éticas no campo do “político”, justamente a esfera destinada a resolver a duplicidade. A coisa chegou a tal ponto que a palavra “política” passou a designar precisamente esse jogo amoral no qual a igualdade é sempre ultrapassada por pessoas que, desdenhando das leis, passam a controlá-las em vez de zelar por elas. Ou um ritual no qual os criminosos são acusados mas, quando são importantes, livram-se da pena porque têm comprovadas relações pessoais e partidárias com os donos do poder. Pior ainda, “política” passou a designar uma rotina de desfaçatez que é a manifestação mais patente do outro traço daquela duplicidade ética: uma extraordinária ambiguidade no que diz respeito a dois sentimentos que acompanham o rompimento da norma, a saber, a vergonha e a culpa.

(DAMATTA, Roberto. Veja, 15 ago. 2007 - adaptado.)

Para Damatta, a coexistência entre as duas éticas: