“Não, não, a minha memória não é boa. (...) Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão.

E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele. Quantas ideias finas me acodem então! Que de reflexões profundas! Os rios, as montanhas, as igrejas que não vi nas folhas lidas, todos me aparecem agora com as suas águas, as suas árvores, os seus altares; e os generais sacam das espadas que tinham ficado na bainha, e os clarins soltam as notas que dormiam no metal, e tudo marcha com uma alma imprevista.

É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas.”

(ASSIS, Machado de. Dom Casmurro, cap. LIX.)

Com relação ao texto acima, considere as seguintes afirmativas:

1. A conversa dirigida ao “leitor amigo”, que colabora para o humor e para a ironia, é característica da ficção de Machado de Assis.

2. A memória fraca de Bento Santiago é responsável pela ambiguidade com que ele traça o perfil de Capitu.

3. Para preencher as lacunas da narração, os leitores devem levar em conta que Dom Casmurro reúne memórias de uma personagem fictícia, e não a memória autobiográfica de Machado de Assis.

4. O trecho citado apresenta uma discussão de caráter metatextual, cujo efeito é bastante moderno: o texto chama a atenção sobre si mesmo, possibilitando, para o leitor, a percepção de que se trata de uma narrativa ficcional.

Assinale a alternativa correta.