Texto II

VII – A comadre

Cumpre-nos agora dizer alguma coisa a respeito de uma personagem que representará no correr desta história um importante papel, e que o leitor apenas conhece, porque nela tocamos de passagem no primeiro capítulo: é a comadre, a parteira que, como dissemos, servira de madrinha ao nosso memorando.

Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do ofício de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas religiosas que aqui se faziam; sabia de cor os dias em que se dizia missa em tal ou tal igreja, como a hora e até o nome do padre; era pontual à ladainha, ao terço, à novena, ao setenário; não lhe escapava via-sacra, procissão, nem sermão; trazia o tempo habilmente distribuído e as horas combinadas, de maneira que nunca lhe aconteceu chegar à igreja e achar já a missa no altar. De madrugada começava pela missa da Lapa; apenas acabava ia à das 8 na Sé, e daí saindo pilhava ainda a das 9 em Santo Antônio. O seu traje habitual era, como o de todas as mulheres da sua condição e esfera, uma saia de lila preta, que se vestia sobre um vestido qualquer, um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço, outro na cabeça, um rosário pendurado no cós da saia, um raminho de arruda atrás da orelha, tudo isto coberto por uma clássica mantilha, junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso. Nos dias dúplices, em vez de lenço à cabeça, o cabelo era penteado, e seguro por um enorme pente cravejado de crisólitas.

[...]

A comadre continuou a aparecer daí em diante por um motivo que mais tarde se saberá.

Por agora vamos continuar a contar o que era feito do Leonardo.

(ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. 25. ed. São Paulo: Ática, 1996.)

Sobre o texto II, é correto afirmar:

a) A acumulação de elementos que caracterizam a personagem, tanto quanto à aparência como quanto aos seus hábitos e temperamento, evidencia o detalhismo fotográfico e a precisão descritivista que inscrevem esse romance nos quadros do Naturalismo.

b) Em se tratando de um livro de memórias, o romance adota estratégias de escrita típicas de textos em que, na velhice, após uma vida acidentada, a personagem principal, amadurecida e redimida de suas culpas, transmite aos mais jovens a sabedoria adquirida, em tom altivo e professoral.

c) No que diz respeito à composição da comadre, é possível estabelecer no trecho destacado uma correlação entre os seguintes pares de elementos, reveladores de seu caráter híbrido: "muito beata – benzia de quebranto", "rosário pendurado no cós da saia – raminho de arruda atrás da orelha".

d) A abertura e o fecho do capítulo, transcritos acima, podem ser associados ao fato de o livro ter sido originalmente publicado em folhetim, ou seja, capítulo a capítulo, devendo portanto estimular o leitor a manter o interesse pelos incidentes já publicados e suscitar curiosidade pelo que estivesse por vir.

e) A alusão ao "memorando", no primeiro parágrafo, remete-nos a um incidente típico de enredos melodramáticos da literatura oitocentista: a carta secreta, de cujos segredos dependerão os destinos das personagens centrais do romance Memórias de um sargento de milícias.