Texto I
O pavão
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade. Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
(BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 1983.)
Texto II
Tragédia brasileira
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa. Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.
(BANDEIRA, Manuel. Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1966.)
Sobre os textos transcritos acima, é correto afirmar:
a) A concisão e o caráter descritivo do texto I fazem dele exemplar significativo do tom dominante nos escritos que integram a antologia de Rubem Braga: objetividade e precisão na representação dos temas abordados, com intenções informativas, em registro tipicamente jornalístico.
b) O texto II revela as preocupações do autor com as mazelas sociais, ali representadas por meio da crítica à precariedade das condições de habitação das classes populares, num raro exemplo de uso da prosa, modalidade em que o autor quase não se exercitou.
c) Quanto à tipologia, o texto I é uma crônica e o texto II um poema, não tanto por diferenças de natureza estritamente textual, mas antes pelo contexto da publicação de um e outro trabalho, assim como por seu modo de inserção no conjunto da obra de seus respectivos autores.
d) O lirismo presente no texto I manifesta-se em acentos poéticos que são perceptíveis, entre outros aspectos, na intensidade emocional que se expande com nitidez na enumeração de verbos do parágrafo final, bem como na exclamação "assim é o amor, oh! minha amada".
e) Atenta às coisas miúdas da vida cotidiana, é nelas que a poesia de Manuel Bandeira encontra não apenas sua matéria, mas muito dos seus recursos expressivos, do que é bom exemplo o texto II, em cuja construção é possível reconhecer traços textuais do noticiário policial.
f) No texto II, a irrupção do extraordinário em meio à vivência comum de toda a gente revela a influência do realismo mágico na obra de Manuel Bandeira; por sua vez, no texto I, a preocupação com o convencimento do leitor reflete o perfil socialmente engajado da arte daquele período.