Bruno Lichtenstein

Rubem Braga

18 de Julho de 1939

Foi preso o menino Bruno Lichtenstein, que arrombou a Faculdade de Medicina. O menino Bruno Lichtenstein não é arrombador profissional. Apenas acontece que o menino Bruno Lichtenstein tem um amigo, e esse amigo é um cachorro, e esse cachorro ia ser trucidado cientificamente, para estudos, na Faculdade de Medicina. O poeta mineiro Djalma Andrade tem um soneto que acaba mais ou menos assim:

"se entre os amigos encontrei cachorros,

entre os cachorros encontrei-te, amigo”.

Mas com toda a certeza o menino Bruno Lichtenstein jamais leu esses versos. Também com certeza nunca lhe explicaram o que é vivissecção, nem lhe disseram que seu cão ia ser vivisseccionado. Tudo o que ele sabia é que lhe haviam carregado o cachorro e que iam matá-lo. Se fosse pedi-lo, naturalmente, não o dariam. Quem, neste mundo, haveria de se preocupar com o pobre menino Bruno Lichtenstein e o seu pobre cão? Mas o cachorro era seu amigo — e estava lá, metido em um porão, esperando a hora de morrer. E só uma pessoa no mundo podia salvá-lo: um menino pobre chamado Bruno Lichtenstein. Com esse sobrenome de principado, Bruno Lichtenstein é um garoto sem dinheiro. Não pagará a licença de seu amigo. Mas Bruno Lichtenstein havia de salvar a vida de seu amigo — de qualquer jeito. E jeito só havia um: ir lá e tirar o cachorro. De longe, Bruno Lichtenstein chorava, pensando ouvir o ganido triste de um condenado à morte. Via homens cruéis metendo o bisturi na carne quente de seu amigo: via sangue derramado. Horrível, horrível. Bruno Lichtenstein sentiu que seria o último dos infames se não agisse imediatamente.

Agiu. Escalou uma janela, arrebentou um vidro, saltou. Estava dentro do edifício. Andando pelas salas desertas, foi até onde estava o seu amigo. Sentiu que o seu coração batia mais depressa. Deu um assovio, um velho assovio de amizade.

Um vulto se destacou em um salto - e um focinho quente e úmido lambeu a mão de Bruno Lichtenstein. Agora era fugir para a rua, para a liberdade, para a vida...

Bruno Lichtenstein, da cabeça aos pés, tremia de susto e de alegria. Foi aí que ele ouviu uma voz áspera e espantada de homem. Era o dr. Loforte. O dr. Loforte surpreendeu o menino. Um menino podre, que tremia, que havia arrombado a Faculdade. Só podia ser um ladrão! Bruno Lichtenstein não explicou nada — e fez bem. Para o dr. Loforte um cachorro não é um cachorro — é um material de estudo como outro qualquer.

Na polícia apareceu o pai do menino. O pai, o professor e o delegado conversaram longamente — e Bruno Lichtenstein não ouvia nada. Só ouvia, lá longe, o ganir de um condenado à morte.

Já te entregaram o cachorro, esse cachorro ia ser trucidado cientificamente, para estudos, na Faculdade de Medicina. Tu o mereceste, porque tu foste amigo. Não te deram nem te darão medalha nenhuma — porque não há medalha nenhuma para distinguir a amizade. Mas te entregaram o teu cachorro, o cachorro que reivindicaste como um pequeno herói. Tu é um homem, Bruno Lichtenstein — um homem no sentido decente da palavra, muito mais homem que muito homem. Um aperto de mão, Bruno Lichtenstein.

BRAGA, Rubem. 1939 — Um episódio em Porto Alegre (Uma fada no front). Rio de Janeiro. Record, 2002. pg 37.

Na sequência de palavras sublinhadas abaixo, uma delas se acentua por uma regra diferente das demais. Assinale a opção em que essa palavra aparece.