Leia atentamente o seguinte texto:
Encontro na praça
José Luís da Cunha Fernandes, morador no Saco de São Francisco, uma tarde dessas, teve um encontro singular. Ia voltar de barca para Niterói e portava sua máquina fotográfica. Sua intenção era pegar o pôr-do-sol no Rio de dentro da barca. Mas ali na Praça 15 de Novembro, em frente à estação de embarque, deu-se o encontro de José Luís com uma rara personalidade. Ninguém reparava nela, no insólito de sua presença, no inesperado de sua postura, em tudo que era de chamar atenção. Mas José Luís, que sabe ver, e não apenas olhar, maravilhou-se. Maravilhou-se e voltou imediatamente à infância, pois o ser que ali se encontrava parado em meio à multidão, ele o conhecera em menino, e desde então nunca mais o vira. Nunca. E de tanto não o ver, por assim dizer se esquecera dele. As conversas, as leituras, as atividades de todo dia não costumam referir-se à existência dessa figura de repente desaparecida. Então, ela ficara encaixotada num desvão da memória, mas tão escondido estava o caixote que era como se não existisse. E assim se passaram anos. O que José Luís encontrou na Praça 15 foi uma esperança.
E estava pousada no alto da caixa de correio. Estava pousada. Quantas crianças de hoje conhecem a esperança? Quantas ligam esse nome a um organismo vivo, que habita o folclore pela cor, que é promessa de felicidade? Menino do interior ainda pode ver, um dia ou outro, a esperança. Menino da cidade, terá muita sorte se a encontrar no Alto da Boa Vista ou no Parque da Cidade. Mas no cotidiano dos bairros superpovoados, nas ruas inteiramente plantadas de edifícios secos e agrestes, quem já viu esse bichinho? Quem sabe de sua esperteza em imitar folhas de arbusto, iludindo não só os outros insetos, que ele deseja papar, mas até a gente? Pois em contrário a todas as possibilidades, a esperança postara-se naquele trecho febril do Rio de Janeiro, não ligando para o tumulto, a pressa, o barulho, a poeira, o fumo de descarga dos veículos. Ele elegera o cocuruto da caixa da ECT para a habitação provisória. Ali estava, quieta, verde, ortóptera, saltadora mas imóvel, mimética mas em sua cor natural, estridulante mas silenciosa, guardando todas as potencialidades: simplesmente esperança, esperança para servi-los. E em que servia a esperança ao povo que ia quase correndo e não lhe dava a mínima confiança? Só José Luís era capaz de sabê-lo, por ser o único a tomar conhecimento do inseto em cima da caixa. Percebeu logo que a esperança cumpria delicada tarefa. Em primeiro lugar, oferecia ou tentava oferecer boas notícias nas cartas colocadas no interior da caixa. Palavras de carinho, promessas de emprego, reconciliações, doente que ficou bom, dívida que se conseguir pagar, beijos. Talvez as cartas dissessem o contrário disso, mas a esperança concentrava seu princípio influente nas próximas correspondências, as definitivas. Bem que a ECT podia designar a esperança para seu logotipo. Inseto ágil, pulando como ele só: imagem de velocidade, que se vem conseguindo implantar no tráfego postal. Em seguida, a esperança dirigia-se a todos, que voltavam a Niterói ou vinham de lá; e ainda aos avulsos, que ficam por aqui mesmo, e transitam na Praça. “Ó vós todos que passais, aqui estou (dizia a esperança em seu falar tetigonídeo, que o vulgo infelizmente não capisca) para que repareis o meu verde e o guardeis na rotina pelo que ele vale. Vale o melhor. Vale a capacidade de transformar o real em transreal e usufruir as coisas deleitáveis que esse pode distribuir em forma de paz de espírito e coração sensível. Nem tudo é sujo na vida. Há claridades. Mas a claridade começa dentro de você, de vós mesmos... Depois é que ela se espalha pela cidade e pela vida dos outros. Eu, a esperança, à maneira dos reis antigos, vos envio saudar.” Ninguém ouviu, ninguém traduziu. Só José Luís, que documentou a presença da esperança, fotografando-a. Ia fotografar o crepúsculo, mas antes teve a sorte de fotografar nada menos que uma virtude teologal em minúscula forma vivente.
Carlos Drummond de Andrade
Diz-se que locuções conjuntivas, preposicionais ou adverbiais que têm como base uma palavra feminina levam o acento grave indicativo de crase. Tal situação ocorre em