UNICAMP 2010 Português - Questões

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"Os turistas que visitam as favelas do Rio se dizem transformados, capazes de dar valor ao que realmente importa", observa a socióloga Bianca Freire-Medeiros, autora da pesquisa "Para ver os pobres: a construção da favela carioca como destino turístico". "Ao mesmo tempo, as vantagens, os confortos e os benefícios do lar são reforçados por meio da exposição à diferença e à escassez. Em um interessante paradoxo, o contato em primeira mão com aqueles a quem vários bens de consumo ainda são inacessíveis garante aos turistas seu aperfeiçoamento como consumidores."

No geral, o turista é visto como rude, grosseiro, invasivo, pouco interessado na vida da comunidade, preferindo visitar o espaço como se visita um zoológico e decidido a gastar o mínimo e levar o máximo. Conforme relata um guia, "O turismo na favela é um pouco invasivo, sabe? Porque você anda naquelas ruelas apertadas e as pessoas deixam as janelas abertas. E tem turista que não tem ’desconfiômetro’: mete o carão dentro da casa das pessoas! Isso é realmente desagradável. Já aconteceu com outro guia. A moradora estava cozinhando e o fogão dela era do lado da janelinha; o turista passou, meteu a mão pela janela e abriu a tampa da panela. Ela ficou uma fera. Aí bateu na mão dele."

(Adaptado de Carlos Haag, Laje cheia de turista. Como funcionam os tours pelas favelas cariocas. Pesquisa FAPESP n$\ ^{s}$ 1 65, 2009, p.90-93.)

  1. a) Explique o que o autor identifica como "um interessante paradoxo”.

  2. b) O trecho em itálico, que reproduz em discurso direto a fala do guia, contém marcas típicas da linguagem coloquial oral. Reescreva a passagem em discurso indireto, adequando-a à linguagem escrita formal.

No excerto abaixo, o romance Iracema é aproximado da narrativa bíblica:

Em Iracema, (...) a paisagem do Ceará fornece o cenário edênico para uma adaptação do mito da Gênese. Alencar aproveitou até o máximo as similaridades entre as tradições indígenas e a mitologia bíblica (...).

Seu romance indianista (...) resumia a narrativa do casamento inter-racial, porém (...) dentro de um quadro estrutural pseudo-histórico mais sofisticado, derivado de todo um complexo de mitos bíblicos, desde a Queda Edênica ao nascimento de um novo redentor.

(David Treece, Exilados, aliados, rebeldes: o movimento indianista, a politica indigenista e o Estado-Nação imperial. São Paulo: Nankin/Edusp, 2008: p. 226, 258-259.)

Partindo desse comentário, responda às questões:

  1. a) Que associação se pode estabelecer entre os protagonistas do romance e o mito da Queda com a consequente expulsão do Paraíso?

  2. b) Qual personagem poderia ser associada ao "novo redentor”? Por quê?

Leia o seguinte comentário a respeito de O Cortiço, de Aluísio Azevedo:

Com efeito, o que há n’ O Cortiço são formas primitivas de amealhamento*, a partir de muito pouco ou quase nada, exigindo uma espécie de rigoroso ascetismo inicial e a aceitação de modalidades diretas e brutais de exploração, incluindo o furto (...) como forma de ganho e a transformação da mulher escrava em companheira-máquina. (...) Aluísio foi salvo erro meu, o primeiro dos nossos romancistas a descrever minuciosamente o mecanismo de formação da riqueza individual. (...) N’ O Cortiço [o dinheiro] se torna implicitamente objeto central da narrativa, cujo ritmo acaba se ajustando ao ritmo da sua acumulação, tomada pela primeira vez no Brasil como eixo da composição ficcional.

(Antonio Candido, De cortiço a cortiço. In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993, p. 129-3.)

*amealhar: acumular (riqueza), juntar (dinheiro) aos poucos

  1. a) Explique a que se referem o rigoroso ascetismo inicial da personagem em questão e as modalidades diretas e brutais de exploração que ela emprega.

  2. b) Identifique a "mulher escrava” e o modo como se dá sua transformação "em companheira-máquina”.

O excerto abaixo, de Vidas Secas, trata da personagem Sinha Vitória:

Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um papagaio, era ridícula. Sinha Vitória ofendera-se gravemente com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo. Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado. Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e misturava-a às obrigações da casa. (...) Um mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeceu lembrando-se da seca (...). Diligenciou afastar a recordação, temendo que ela virasse realidade. (...) Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher, acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava. Fez várias tentativas, inutilmente. (...) Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçar sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha à gente? Arreliava-se com a comparação. Pobre do papagaio. Viajara com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha. Gaguejava: - "Meu louro.” Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha Vitória nem queria lembrar-se daquilo.

(Graciliano Ramos, Vidas secas. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2007, p.41-43.)

  1. a) Por que a comparação feita por Fabiano incomoda tanto Sinha Vitória? Que lembrança evoca?

  2. b) Tendo em vista a condição e a trajetória de Sinha Vitória, justifique a ironia contida no nome da personagem. Que outra personagem referida no excerto acima também revela uma ironia no nome?

O poeta Vinicius de Moraes, apesar de modernista, explorou formas clássicas como o soneto abaixo, em versos alexandrinos (12 sílabas) rimados:

Soneto da intimidade

Nas tardes de fazenda há muito azul demais.

Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora

Mastigando um capim, o peito nu de fora

No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais

Para ir beber na fonte a água fria e sonora

E se encontro no mato o rubro de uma amora

Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume

Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme

E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve

Nós todos, animais, sem comoção nenhuma

Mijamos em comum numa festa de espuma.

(Vinicius de Moraes, Antologia poética. São Paulo: Companhia Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais. das Letra5, 2001, p. 86)

  1. a) Essa forma clássica tradicionalmente exigiu tema e linguagem elevados. O "Soneto da intimidade” atende a essa exigência? Justifique.

  2. b) Como os quartetos anunciam a identificação do eu lírico com os animais? Como os tercetos a confirmam?

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